Feito para amar a magia
29.fevereiro.2000

Não dá mais. Eu preciso escrever sobre o Nick Drake. Preciso explicar pros outros quem ele foi, como é a sua música, por que ela me persegue e me comove cada vez que escuto de novo. Minha vontade é gritar: vocês precisam ouvir isto! Desliguem as guitarras, saiam das pistas de dança, esqueçam o tecno e o rock n'roll, arranjem um cd do Nick Drake e se tranquem no quarto!

Está certo, euforia é uma péssima maneira de começar um texto, mas estou eufórico, e isso me faz bem. Toda objetividade será usada a serviço desta euforia.

Pra quem tá boiando, Nick Drake é um cantor e compositor inglês de folk, morto em 1974, e cuja obra só ficou conhecida postumamente, a partir do final dos anos 80.

Descobri Nick Drake por acaso. Há uns três anos atrás fui na Boca do Disco, ali na Marechal Floriano Peixoto, disposto a comprar um cd de alguma banda que eu não conhecia. Pedi sugestões pro dono da loja, um hippie Zappa-wanna-be que tratou de me empurrar discos de bandas medianas dos anos 70. Como esnobei laconicamente cada uma de suas sugestões, o cara ficou um pouco contrariado e adotou uma estratégia sutil pra me sacanear: foi me sugerinado cds de bandas ruins, aquelas que deviam estar no estoque há décadas. Cada nova sugestão vinha acompanhada da frase "esse eu acho que tu vai gostar, faz o teu tipo" e de um sorriso de escárnio mal-disfarçado. Entrei no jogo do cara, e só pra irritar ele mais ainda eu aceitava cada sugestão e pedia pra escutar o disco no aparelho de som ambiente da loja. Quanto pior o disco que ele me oferecia, mais eu fingia que gostava, e ficava horas escutando, simulando interesse. Ficamos nessa babaquice por cerca de uma hora e qunze minutos, e eu já estava realmente cansado e diposto a mandar ele se foder e ir embora, quando o sujeito me ofereceu um cd de capa verde, com um magrão subnutrido enrolado num cobertor na capa. Pensei: "vou escutar mais esse, bem devagarzinho, e depois dizer 'tua loja só
tem merda' e ir embora". Pedi pra escutar o disco. Começou a tocar um violão acústico com uma técnica de dedilhado bizarro. Me interessei. Logo mais entrou uma percussão discreta e um violoncelo em acompanhamento. A sonoridade era soturna, lembrava a vista da janela de uma casinha isolada em Canela, em dia chuvoso se inverno. Aí entou a voz, grave, quase sussurrante: "Strange face, with your eyes /So pale and sincere". "Pode tirar, vou levar". Frank Zappa arregalou os olhos: "Quê? Vai levar ESSE?". Sim, vou levar esse. Rápido.

O cd em questão era WAY TO BLUE - AN INTRODUCTION TO NICK DRAKE, uma coletânea de 1992 com belíssimo encarte. São dezesseis músicas que procuram resumir a sonoridade de Drake. Desde então me apaixonei pela obra do cara. Mas minha euforia só foi consolidada recentemente: minha mãe me trouxe dos EUA a caixa FRUIT TREE, que reúne os três álbuns lançados em vida pelo Nick Drake, mais um quarto volume de gravações raras e inéditas.

A obra de Nick Drake é composta apenas disso, três álbums: FIVE LEAVES LEFT, BRYTER LAYTER e PINK MOON, e uma compilação, TIME OF NO REPLY. Juntos, são 45 canções, somando não mais do que 150 minutos de música. Uma obra concisa, mas que torna Drake um dos mais inspiradores e admiráveis músicos obscuros dos últimos 35 anos.

A música de Drake pode ser descrita como folk com toques ocasionais de jazz. Mas a descrição só funciona se temos uma boa compreensão do que significa "música folk".

Folk é, num sentido original e mais amplo, qualquer música que integra uma cultura através da tradição oral. Dentro deste gênero, existe a distinção entre "baladas" e "folk": baladas são canções longas que relatam uma história; canções folk, por sua vez, são mais curtas, introspectivas e líricas. Em ambos os casos, são músicas muito antigas, sem autor, perpetuadas através da tradição oral. Folk é quase um sinônimo de música tradicional.

Mas o termo "folk" foi apropriado nas últimas décadas para denominar um tipo de música produzida contemporaneamente. É um gênero não muito específico, que mistura traços do folk tradicional em língua inglesa com gêneros essencialmente acústicos como country, música celta e até mesmo blues. O folk contemporâneo é a música de gente como Bob Dylan, Neil Young, e de artistas novos como Ben Harper (do álbum WELCOME TO THE CRUEL WORLD), Dan Bern, Will Oldham e Elliot Smith. A música folk de hoje pode ser descrita como uma canção de melodia leve, acompanhada por violão acústico, trazendo ocasionalmente arranjos discretos com percussão, violino, cello ou harmonica. As letras ainda seguem o modelo das baladas (histórias de um ou mais personagens, modelo modernamente cultivado por Bob Dylan entre outros) e das canções folk (pessoais e líricas, como em Neil Young) tradicionais, revendo temas universais e introduzindo temas da nossa época.

Daí se pode dizer da música de Drake: folk soturno, melancólico, com pitadas de jazz. Mas somente isso nunca dará uma idéia fiel da obra de Drake. É necessário escutar para acreditar, e conhecer para compreender. As cordas do violão, frequentemente configuradas em afinações excêntricas, são dedilhadas com técnicas impressionantes. As melodias são invariavelmente lindas, criando climas que trazem à imaginação campos chuvosos, árvores, lagos escuros, ambientes aquáticos, o murmúrio de um rio, o silêncio de uma caverna, brechas de sol num céu nublado. A voz de Drake é grave, porém não esconde um timbre juvenil, ou até adolescente. Ele nunca eleva a voz: pelo contrário, beira o sussuro em músicas como TIME HAS TOLD ME, WHICH WILL e MAYFAIR, esta última provavelmente composta para a mãe, Molly Drake. É uma canção comovente ao cúmulo: pode-se nem entender todas as palavras, mas a simples sonoridade é suficiente pra botar um nó na garganta.

Para compreender a música de Drake, é indispensável conhecer sua história. Ao redor dele existe uma aura de lenda, segundo a qual Drake era um sujeito patologicamente depressivo, que falava apenas quando era absolutamente necessário. Embora sua doença mental nunca tenha sido provada, todas as biografias de Drake o descrevem como um sujeito tímido, silencioso e depressivo. Um conhecido da época da universidade afirma que, em três anos de convívio, não trocou com Nick mais do que vinte palavras.

Nick começou a compor aos 17 anos. Aos 20, lançou o primeiro disco, FIVE LEAVES LEFT, obtendo aprovação exaltada da crítica, que comparou o disco ao ASTRAL WEEKS de Van Morrison. Confiante na carreira musical, Nick abandonou a faculdade em Cambridge, a um ano de completar o curso. Ao protesto do pai, que destacou a segurança que uma graduação em Cambridge proporcionaria, Nick retrucou: "é exatamente esta segurança que não me interessa". Para a divulgação de FIVE LEAVES LEFT, Nick concordou em fazer algumas apresentações ao vivo, apesar de sua timidez. Mas ele abandonou os palcos para sempre depois de algumas performances frustrantes, onde a platéia mais conversava do que ouvia.

Mais tarde mudou-se para uma casa de campo em Notting Hill. Durante meses, isolado no frio, compôs o segundo álbum, BRYTER LAYTER, que consumiu quase um ano de gravações em estúdio. Diferente da simplicidade e tristeza de FIVE LEAVES LEFT, BRYTER LAYTER trouxe canções mais animadas, com acentuados traços de jazz, e arranjos mais complexos, com pianos e saxofones. A melancolia, contudo, ainda era o sentimento predominante, porém aqui ela vinha adornada de uma alegria ingênua, quase infantil. Era uma obra-prima à altura de FIVE LEAVES LEFT, e os produtores estavam confiantes de que Nick Drake se tornaria um astro.

Mas não foi assim: o disco vendeu mal, e Nick ficou arrasado. Retirou-se para a casa dos pais, e iniciou-se nessa época a sua gradual jornada à escuridão. Mês após mês sua depressão aumentava, e seus pais e amigos o convenceram a frequentar psiquiatras. As pílulas nunca funcionaram. A depressão de Nick era uma depressão racional. Ele sabia o que estava se passando: tinha a sensação que sua mensagem para as pessoas nunca seria compreendida.

No auge de sua introspecção, Nick gravou seu terceiro e último disco. PINK MOON foi gravado em apenas duas noites. A maioria das músicas foi gravada em apenas um take, só com voz e violão. Somadas, as onze canções do disco ocupam 28 minutos. Questionado pelo produtor sobre como desejava arranjar as músicas, Nick respondeu lacônico: "Nada de arranjos. Não quero firulas". PINK MOON é talvez o mais melancólico e profundo disco já gravado. Sua beleza é indescritível, desde a melodia bucólica da canção THINGS BEHIND THE SUN até as comoventes palavras em WHICH WILL ("Which do you dance for? / Which makes you shine? /Which will you choose now / if you won't choose mine? / Which will you hope for? / Which can it be? / Which will you take now / if you won't take me? / And tell me now / Which will you love the best").

Nick Drake não era poeta, ainda que sua letras intimistas, líricas, carregadas de simbologias (árvores, chuva, flores, sol, vento, rio, céu, quedas, mágica) sejam muitas vezes comparadas à poesia de William Blake e Yeats. Com Blake, Nick tem em comum a sensibilidade capaz de encontrar na folha, na gota de chuva e nos mais simples eventos, uma beleza transcendente, maior que o fato ou a coisa em si.

Segundo artigos a seu respeito, Nick era um sujeito tímido e sensível demais para lidar com um mundo áspero e tumultuoso. Buscando refúgio, seus sentidos encontravam poesia nos detalhes mais simples, na natureza e na quietude. A "mágica" - palavra que ele empregou obstinadamente em suas letras - era o que lhe importava: as impressões genuínas, transcendentais, nascidas do coração. É esta mágica que ele procurou passar em suas músicas. Não havia, entretanto, uma audiência disposta a compreendê-lo. Sua fraqueza o conduziu a uma depressão esmagadora e sem volta: ele era aquele sujeito que ia nas festas, mas não falava com ninguém e ficava encostado na beira da porta, como para garantir a possibilidade de ir embora. E, enquanto os outros se divertiam lá dentro, ele encontrava beleza numa borboleta que passava, fugindo do barulho.

Isso talvez explique, em parte, o redescobrimento e profunda admiração à obra de Nick Drake nos anos 90, época em que o materialismo expulsou o espírito, o obscuro e a magia do nosso cotidiano, em que o amor é explicado através de teorias psico-evolucionistas e pela liberação de certas substâncias químicas no organismo. Nick via o mundo com uma sensibilidade que hoje nos falta, e que podemos encontrar em suas músicas.

Drake nasceu na Inglaterra em 1948 e morreu em 1974, aos 26 anos, na cama de seu quarto na casa dos pais, de uma overdose de antidepressivos. Até hoje não se sabe se foi suicídio ou um acidente. Amigos e familiares insistem que Nick nunca cometeria suicídio, e que inclusive dava sinais de melhora de ânimo nas semanas anteriores a sua morte. Dias antes de falecer, ele presenteou à mãe um exemplar de O MITO DE SÍSIFO, de Camus, livro que fala contra o suicídio.

"I was born to sail away
Into a land of forever
Not to be tied
to an old stone grave
In your land of never

I was made to love magic
All its wonder to know
But you all lost that magic
Many many years ago"
(-- N. Drake, 'I was made to love magic')

A obra de Nick Drake intriga e perturba, não somente por sua beleza, mas por ser apenas o início de carreira de um garoto que morreu aos 26 anos, soterrado pela depressão. É magia e sensibilidade o que nos falta no mundo de hoje, mas a trajetória de Nick nos indica que nem mesmo elas podem resultar em salvação. O que resta? Respondendo a esta pergunta, Nick apontaria para as raízes de uma árvore entrincheirada no concreto de uma calçada, e compreenderíamos que a vida é um mistério insolúvel. Ás vezes, na visão rápida de uma flor, uma mulher ou uma tempestade, nos damos conta disso. E o sentimento que daí resulta, é ele que Nick Drake foi capaz de transformar em música. 

Daniel Galera
(Proa da Palavra)