Bailarina de Asfalto
30.agosto.2002

Então, foi assim: aproveitei que o sinal estava fechado láaaaaaa atrás e tratei logo de atravessar a rua. Foi menos de meio segundo, um lapso fugaz de tempo e senti que eu estava indo ao chão, literalmente. Um momento gelol cinematográfico. Não sei como foi que consegui lembrar duas coisas, também não sei em que ordem: uma, que o sinal poderia abrir e eu estava na pista dos ônibus; duas, que eu estava de saia e a queda poderia ser vexatória. Não me pergunte como, mas ensaiei um "alongamento" da perna direita para ficar menos vulnerável — sem rasgar a saia — e fui escorregando até o chão, numa pose muito lady — na verdade, se não fosse eu morena, pareceria a própria "Barbie Aeróbica", em plena Nossa Sra. de Copacabana às 6 da tarde.

Nem bem "sentei", de um lado sobre minha própria perna, do outro tocando o asfalto frio naquele "spaccato" improvisado e vejo uma mão estendida na minha direção. Melhor pegar a mão de uma vez e tratar de sair daqui, pensei. Quando ergo os olhos vejo um indiano (suponho) de três metros (dois de homem e um de turbante) com um sorriso indagador nos lábios. Sorrio de volta, passo a mão pelo corpo (é uma coisa instintiva — não tinha poeira mas a gente disfarça sacundindo a falta dela) e trato de alcançar a calçada para onde eu deveria ter ido sem essa pausa estratégica.

Tabacaria. Antes que eu abra a boca pra pedir a cigarrilha (maldita encomenda), o velhinho que me conhece de longa data exclama quase eufórico: "Mas que bela abertura de pernas, hein! Machucou? Quer gelo?" Agradeço. Não cheguei a me machucar, está tudo bem realmente e eu só quero a cigarrilha infame e que, por favor, alguém tenha a delicadeza de fazer de conta que não viu minha cena de bailarina de asfalto. Saio apressada e passo em frente ao ponto de ônibus, onde um rapaz me sorri muito simpaticamente — sou capaz de jurar que se eu sorrisse de volta ele ia cair na gargalhada...

Estou quase atravessando a rua (de volta) e um garoto começa a gritar: "Moça, moça, olha só: o que fez a senhora cair foi essa embalagem de remédio". E, pasmei, ele trazia a embalagem na mão quase como uma relíquia. Ok, é assim mesmo, quando a gente só quer ir embora e esquecer que a Av. Nossa Sra. de Copacabana — quiçá o bairro em peso — assistiu seu momento gelol, sempre tem alguém que interrompe seu caminho. Quase perguntei ao pivete se ele queria que eu guardasse a embalagem vazia de remédio como recordação, mas resolvi murmurar qualquer coisa e apressar o passo.

Voltei pra loja de onde não deveria ter saído, passei um gelo no joelho e estamos aqui minhas pernas, minha saia e eu, sem sequelas.

Hoje, na volta da minha caminhada, encontro o indiano (continuo supondo) com os mesmos 2 metros de homem e um de turbante. Foi então que percebi que ele é dono de uma loja ali naquele pedaço de quarteirão. Ele sorriu e eu cheguei a dar uma parada, ainda que imperceptível, na calçada, pensando que eu deveria agradecer a ele pela ajuda do outro dia...

Mas além de eu sentir que já estava mais vermelha que pimentão, me ocorreu que ele, na verdade, não falou comigo. Foi uma ajuda muda, ele diria. Constrangida, digo eu. E depois, sabe-se lá o que ele seria capaz de dizer. E em que língua...

Claudia Letti
http://afrodite.palavraaberta.com.br