Cidade Submersa
09.setembro.2005
Isso tem alguns anos. Chegamos em New Orlean apenas com a recomendação de alguns hotéis. O primeiro que fomos era simples e simpático, mas a recepcionista queria nos cobrar um preço mais alto porque só havia um quarto disponível e que, segundo ela, era o mesmo quarto onde havia dormido Paul McCartney. Duvidei, óbvio, e a minha cara me entregou. Mas a mulher era simpaticona e eu arrisquei dizer, no meu inglês by Paraguai, que não fazia diferença porque eu gostava mesmo era de Rolling Stones. Ela riu, baixou o preço e acabamos ficando por lá mesmo. Por esses dias perguntei pro meu ex, "Você lembra em que rua ficava aquele hotel?"
– “Não, só lembro que a gente dormiu na
cama que tinha dormido algum famoso".
A memória e a
credulidade dos homens é uma coisa espantosa.
Foram dias
felizes. Nunca ouvi tanto jazz, andei e me diverti tanto como naquela cidade
singular. E é muito, muito triste ver as cenas degradantes de agora envolvendo
aquela gente calorosa e simpática. Fico me perguntando se são os mesmos que
passaram fome e sede, que foram submetidos a agressões inimagináveis, se foram
mortos. Ou se algumas daquelas pessoas que nos deram informações na rua, que
dançaram conosco no mesmo bar, que nos presenteavam com sorrisos francos, são
as mesmas que saquearam, agrediram ou mataram.
Não posso
acreditar nisso, mas já sabemos, e não é de hoje, o que acontece com seres
humanos de qualquer raça ou credo, quando se vêem acuados e jogados à própria
sorte. Sabemos o que acontece com alguém quando pensa que pode morrer no minuto
seguinte ou quando vê as criaturas que ama sendo tragadas pelo descaso. Dê o
caos a um homem e descubra do que ele é capaz. Subestime um ser humano, dê-lhe
as costas e você saberá como ele vai chamar sua atenção. Trate um homem como bicho e ele vai atacar, cedo ou tarde. Não é difícil de
entender ou prever, nem um pouco. Mas pra quem tem barriga cheia e cama quente
é moleza dar o melhor que tem. Então, especulamos, levantamos teorias, julgamos
e condenamos sem piedade enquanto programamos o passeio do final de semana em
terras tropicais.
Me sentindo estranhamente órfã de um sonho bom, comecei a
buscar informações sobre a cidade submersa. Daqui do meu mundinho seco e
confortável, li notícias, acompanhei buscas de pessoas, me indignei, fiquei
contente com cada amigo de amigo que era encontrado, segui atentamente os
passos de alguém que teve que abandonar seu cachorro e respirei aliviada quando
soube que o cão estava vivo e muito bem. Busquei esperança o tempo todo. E
embora pareça que me ocupei de pessoas ou de animais perdidos, estive ocupada
comigo mesma, numa tentativa desesperada de não desacreditar da espécie humana.
De mim.
Se há alguém que mata, há quem esteja empenhado em salvar. Se há alguém que rouba, há quem queira dividir o pouco que possa ter. Nem tudo está perdido. E quero acreditar que New Orleans, a terra do jazz, da música, do carnaval americano, da comida creola e, especialmente, de gente calorosa, também não. A memória e a credulidade dos homens pode ser uma arma poderosa.
Claudia Letti
é autora do livro Onde Não se Responde, Edições Arteclara
- 96 pg.
e mantém o blog Afrodite sem Olimpo
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