OS BICHOS EM SUAS MÚLTIPLAS DOBRAS

OU O MOVIMENTO PARALISADO NO MUSEU

 

Imagine como seria gostoso mexer em uma obra de arte e dar a ela a forma que você desejasse. Esta é a proposta dos Bichos de Lygia Clark, que fizeram sucesso em mais de uma Bienal Internacional de São Paulo.

                               Renata Sant`Anna – De dois em dois: um passeio pelas Bienais. Martins Fontes

 

            Final de semana desses fomos passear na exposição Ceará Redescobre o Brasil no Centro Dragão do Mar. Foi a coisa mais linda. Só teve um problema: o Pedro e o João. Eles são desses meninos que acham que o visitante tem que bulir, mexer, traquinar e recriar a obra de arte. Não pense que é danação de moleque. É concepção de arte mesmo. Quando não podem mexer na obra, eles próprios se mexem para ver a coisa em outra perspectiva. 

Todos nós sabemos que é proibido tocar nas obras, sobretudo depois do roubo do Muiraquitã. Sempre respeitamos as regras do museu numa boa. Embora o João tenha ficado se coçando para tocar numa pedra que foi esculpida em forma de peixe há mais de dois mil anos ou de ver sua mãe vestida com um colar indígena feito com cascas de besouros. Até aí tudo bem. Ele ficava só na vontade e na imaginação. Mas quando entramos na sala de Arte Contemporânea... foi aquela alegria.

Logo na entrada, nos deparamos com a obra “Bichos” de Lygia Clark, feita de alumínio com  dobradiças. O meninos ficaram animados para mexer. Mas, quando ia tocando no Bicho, surgiu, imediatamente e educadamente, um monitor:

— Você não pode tocar na obra, garoto.

— Por que eu não posso mexer?

— Por que é proibido.

— E quem proibiu?

— A direção do museu.

— Mas a artista não proibiu.

— Como assim?

— Ué! Se tivesse proibido não teria feito com essas dobraduras pra gente mexer.

O funcionário sorriu e não disse mais nada. Continuamos nosso passeio apenas tocando nas coisas com o pensamento.

Mas foi na saída que a antinomia aconteceu. Os monitores entregavam para as crianças o “Catálogo do Aprendiz de Arte”. Uma publicação com informações sobre o Centro Dragão do Mar, contendo propostas e situações didáticas para as crianças que visitam a exposição. Para nossa surpresa, encontramos o Bicho entre as páginas: “Lygia Clark. Bicho. Cerca de 1960. Alumínio. 30 x 45 x 50 cm”. Tinha também um texto que transcrevo na íntegra:

“Que bicho encantado é esse? Que bicho mais engraçado! Não tem barriga. Não tem patas. Será que tem coração? Pode ser o bicho-papão?

Este bicho encantado nasceu da imaginação da artista Lygia Clark. Quando lhe perguntaram quantos movimentos o Bicho pode fazer, ela respondeu: ´Eu não sei, você não sabe, mas ele sabe..` Isso porque o Bicho tem um circuito próprio de movimentos, tem respostas próprias que reagem aos estímulos do espectador quando mexe nele.

Para você que bicho é esse? Que som ele faz? Invente uma história com o ´menino do burrico` do Nino e esse bicho da Lygia Clark. Que aventuras eles podem viver?”

O texto é bem sugestivo. Pedagogicamente lúdico e criativo. Propõe situações de fruição, reflexão, criação e interação das crianças com a obra. Um prato cheio para o Pedro e o João. Bacana! Espera, aí! Como bacana? Se é permanentemente proibido tocar na obra, imagine crianças mexendo, bulindo, traquinando, dobrando,  redobrando, inventando e descobrindo quantos movimentos e quantos bichos existem no Bicho da Lygia Clark?

 

Lygia Clack e Hélio Oiticica são expoentes da chamada arte de participação – movimento que introduz a ação do espectador em tempo real. Nessa concepção, a arte não é mais um mero objeto, mas um processo a ser vivido, que permite ao espectador uma troca corporal e dialógica com a obra. O artista não é mais o autor solitário de sua peça. É na interatividade e na metamorfose que a obra artística é criada. Lygia Clark criou Bichos nessa perspectiva, pois são esculturas de metal com articulações que deveriam ser manipuladas pelo público. Pois é, que deveriam ser manipuladas pelo público. Mas na exposição Ceará Redescobre o Brasil, não é permitido nem sequer tocar na obra. A proposta interativa de Lygia Clark acabou virando peça morta de museu.

Eu, hein? O bicho fica lá! Parado, esperando algum espectador que o mexa e dê movimento aos seus movimentos. O fato é que paralisado ele nada pode responder. Bem que nós poderíamos, pelo menos, fazer um, dois ou três movimentos nem que fosse só pro Bicho se espreguiçar ou soltar um bote.

 

Fabiano dos Santos não é crítico de artes

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