LÉVY, Pierre. O que é o virtual? São Paulo: Ed. 34, 1996. 160 p. (Coleção TRANS)

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p. 11
"A realidade virtual corrompe, a realidade absoluta corrompe absolutamente." (Roy Ascort, Prêmio Ars electronica 1995)

p. 12
"o virtual, rigorosamente definido, tem somente uma pequena afinidade com o falso, o ilusório ou o imaginário. Trata-se, ao contrário, de um modo de ser fecundo e poderoso, que põe em jogo processos de criação, abre futuros, perfura poços de sentido sob a platitude da presença física imediata."

p. 16
"o virtual não se opõe ao real, mas sim ao atual. Contrariamente ao possível, estático e já constituído, o virtual é como o complexo problemático, o nó de tendências ou de forças que acompanha uma situação, um acontecimento, um objeto ou uma entidade qualquer, e que chama um processo de resolução: a atualização."
/
"A atualização aparece então como a solução de um problema, uma solução que não estava contida previamente no enunciado. A atualização é criação, invenção de uma forma a partir de uma configuração dinâmica de forças e de finalidades."

p. 17
"O real assemelha-se ao possível; em troca, o atual em nada se assemelha ao virtual: responde-lhe."

p. 18 a 19
"A virtualização pode ser definida como o movimento inverso da atualização. Consiste em uma passagem do atual ao virtual, em uma "elevação à potência" da entidade considerada. A virtualização não é uma desrealização (a transformação de uma realidade num conjunto de possíveis), mas uma mutação de identidade, um deslocamento do centro de gravidade ontológico do objeto considerado: em vez de se definir principalmente por sua atualidade ("uma solução"), a entidade passa a encontrar sua consistência essencial num corpo problemático."

p. 19
"a virtualização fluidifica as distinções instituídas, aumenta os graus de liberdade, cria um vazio motor."

p. 20
"A imaginação, a memória, a presença, o conhecimento, a religião são vetores de virtualização que nos fizeram abandonar a presença muito antes da informatização e das redes digitais."
/
"a palavra existir vem precisamente do latim sistere, estar colocado, e do prefixo ex, fora de. Existir é estar presente ou abandonar uma presença?"

p. 20 a 21
"A virtualização reinventa uma cultura nômade, não por uma volta ao paleolítico nem às antigas civilizações de pastores, mas fazendo surgir um meio de interações sociais onde as relações se reconfiguram com um mínimo de inércia."

p. 21
"A virtualização submete a narrativa clássica a uma prova rude: unidade de tempo sem unidade de lugar (graças às interações em tempo real por redes eletrônicas, às transmissões ao vivo, aos sistemas de telepresença), continuidade de ação apesar de uma duração descontínua (como na comunicação por secretária eletrônica ou por correio eletrônico). A sincronização substitui a unidade de lugar, e a interconexão, a unidade de tempo."

p. 22
"Cada forma de vida inventa seu mundo (do micróbio à árvore, da abelha ao elefante, da ostra à ave migratória) e, com esse mundo, um espaço e um tempo específicos."
/
"Quando se constrói uma rede ferroviária, é como se aproximássemos fisicamente as cidades ou regiões conectadas pelos trilhos e afastássemos desse grupo as cidades não conectadas. Mas, para os que não andam de trem, as antigas distâncias ainda são válidas."

p. 23
"A multiplicação contemporânea dos espaços faz de nós nômades de um novo estilo: em vez de seguirmos linhas de errância e de migração dentro de uma extensão dada, saltamos de uma rede a outra, de um sistema de proximidade ao seguinte. Os espaços se metamorfoseiam e se bifurcam a nossos pés, forçando-nos à heterogênese."
/
"A multiplicação dos meios de comunicação e o crescimento dos gastos com a comunicação acabarão por substituir a mobilidade física? Provavelmente não, pois até agora os dois crescimentos sempre foram paralelos. As pessoas que mais telefonam são também as que mais encontram outras pessoas em carne e osso. Repetimos: aumento da comunicação e generalização do transporte rápido participam do mesmo movimento de virtualização da sociedade, da mesma tensão em sair de uma "presença"."

p. 24
"Além da desterritorialização, um outro caráter é freqüentemente associado à virtualização: a passagem do interior ao exterior e do exterior ao interior. Esse "efeito Moebius" declina-se em vários registros: o das relações entre privado e público, próprio e comum, subjetivo e objetivo, mapa e território, autor e leitor etc."

p. 25
"As coisas só têm limites claros no real. A virtualização, passagem à problemática, deslocamento do ser para a questão, é algo que necessariamente põe em causa a identidade clássica, pensamento apoiado em definições, determinações, exclusões, inclusões e terceiros excluídos. Por isso a virtualização é sempre heterogênese, devir outro, processo de acolhimento da alteridade."

p. 27
"Estamos ao mesmo tempo aqui e lá graças às técnicas de comunicação e de telepresença. Os equipamentos de visualização médicos tornam transparente nossa interioridade orgânica. Os enxertos e as próteses nos misturam aos outros e aos artefatos. No prolongamento das sabedorias do corpo e das artes antigas da alimentação, inventamos hoje cem maneiras de nos construir, de nos remodelar: dietética, body building, cirurgia plástica. Alteramos nossos metabolismos individuais por meio de drogas ou medicamentos, espécies de agentes fisiológicos transcorporais ou de secreções coletivas... e a indústria farmacêutica descobre regularmente novas moléculas ativas. A reprodução, a imunidade contra as doenças, a regulação das emoções, todas essas performances classicamente privadas, tornam-se capacidades públicas, intercambiáveis, externalizadas. Da socialização das funções somáticas ao autocontrole dos afetos ou do humor pela bioquímica industrial, nossa vida física e psíquica passa cada vez mais por uma "exterioridade" complicada na qual se misturam circuitos econômicos, institucionais e tecnocientíficos. No final das contas, as biotecnologias nós fazem considerar as espécies atuais de plantas ou de animais (e mesmo o gênero humano) como casos particulares e talvez contingentes no seio de um continuum biológico virtual muito mais vasto e ainda inexplorado. Como a das informações, dos conhecimentos, da economia e da sociedade, a virtualização dos corpos que experimentamos hoje é uma nova etapa na aventura de autocriação que sustenta nossa espécie."

p. 28
"As pessoas que vêem o mesmo programa de televisão, por exemplo, compartilham o mesmo grande olho coletivo. Graças às máquinas fotográficas, às câmeras e aos gravadores, podemos perceber as sensações de outra pessoa, em outro momento e outro lugar."

p. 29
"O telefone separa a voz (ou corpo sonoro) do corpo tangível e a transmite à distância. Meu corpo tangível está aqui, meu corpo sonoro, desdobrado, está aqui e lá."
/
"O que torna o corpo visível? Sua superfície: a cabeleira, a pele, o brilho do olhar."

p. 30
"Os implantes e as próteses confundem a fronteira entre o que é mineral e o que está vivo".

p. 31
"A constituição de um corpo coletivo e a participação dos indivíduos nessa comunidade física serviu-se por muito tempo de mediações puramente simbólicas ou religiosas: "Isto é meu corpo, isto é meu sangue'. Hoje ela recorre a meios técnicos."
/
"Através da natação (esporte muito pouco praticado antes do século XX), domesticamos o meio aquático, aprendemos a perder pé, experimentamos uma maneira nova de sentirmos o mundo e de sermos levados no espaço."

p. 32
"Entre o ar e a água, entre a terra e o céu, entre a base e o vértice, o surfista ou aquele que se lança jamais está inteiramente presente. Abandonando o chão e seus pontos de apoio, ele escala os fluxos, desliza nas interfaces, serve-se apenas de linhas de fuga, se vetoriza, se desterritorializa. Cavalgador de ondas, vivendo na intimidade da água, o surfista californiano se metamorfoseia em surfista da Net. Os vagalhões do Pacífico remetem ao dilúvio informacional e o hipercorpo ao hipercórtex. Submisso à gravidade mas jogando com o equilíbrio até tornar-se aéreo, o corpo em queda ou em deslizamento perdeu seu peso. Torna-se velocidade, passagem, sobrevôo."

p. 33
"Meu corpo pessoal é a atualização temporária de um enorme hipercorpo híbrido, social e tecnobiológico. O corpo contemporâneo assemelha-se a uma chama. Freqüentemente é minúsculo, isolado, separado, quase imóvel. Mais tarde, corre para fora de si mesmo, intensificado pelos esportes ou pelas drogas, funciona como um satélite, lança algum braço virtual bem alto em direção ao céu, ao longo de redes de interesses ou de comunicação. Prende-se então ao corpo público e arde com o mesmo calor, brilha com a mesma luz que outros corpos-chamas. Retorna em seguida, transformado, a uma esfera quase privada, e assim sucessivamente, ora aqui, ora em toda parte, ora em si, ora misturado. Um dia, separa-se completamente do hipercorpo e se extingue."

p. 35
"a leitura resolve de maneira inventiva e sempre singular o problema do sentido."
/
"o texto é esburacado, riscado, semeado de brancos. São as palavras, os membros de frases que não captamos (no sentido perceptivo mas também intelectual do termo). São os fragmentos de texto que não compreendemos, que não conseguimos juntar, que não reunimos aos outros, que negligenciamos. De modo que, paradoxalmente, ler, escutar, é começar a negligenciar, a desler ou desligar o texto."

p. 36
"Não é mais o sentido do texto que nos ocupa, mas a direção e a elaboração de nosso pensamento, a precisão de nossa imagem do mundo, a culminação de nossos projetos, o despertar de nossos prazeres, o fio de nossos sonhos."

p. 36 a 37
"Do texto, propriamente, em breve nada mais resta. No melhor dos casos, teremos, graças a ele, dado um retoque em nossos modelos do mundo. Talvez tenha servido apenas para pôr em ressonância algumas imagens, algumas palavras que já possuíamos. Eventualmente, teremos relacionado um de seus fragmentos, investido de uma intensidade especial, com determinada zona de nossa arquitetura mnemônica, um outro com determinado trecho de nossas redes intelectuais. Ele nos terá servido de interface com nós mesmos. Só muito raramente nossa leitura, nossa escuta, terá por efeito reorganizar dramaticamente, como por uma espécie de efeito de limiar brutal, o novelo enredado de representações e de emoções que nos constitui."

p. 37
"Confiamos às vezes alguns fragmentos do texto aos povos de signos que nomadizam dentro de nós. Essas insígnias, essas relíquias, esses fetiches ou esses oráculos nada têm a ver com as intenções do autor nem com a unidade semântica viva do texto, mas contribuem para criar, recriar e reatualizar o mundo de significações que somos."

p. 38
"É talvez porque não sou mais o que sei que posso recolocar este saber em questão."

p. 40
"A maior parte dos programas são máquinas de exibir (realizar) mensagens (textos, imagens etc.) a partir de um dispositivo computacional que determina um universo de possíveis. Esse universo pode ser imenso, ou fazer intervir procedimentos aleatórios, mas ainda assim é inteiramente pré-contido, calculável."

p. 41
"Toda leitura em computador é uma edição, uma montagem singular."

p. 42
"Um texto linear clássico, mesmo digitalizado, não será lido como um verdadeiro hipertexto, nem como uma base de dados, nem como um sistema que engendra automaticamente textos em função das interações com as quais o leitor o alimenta."
/
"Que funções de pesquisa e de orientação o programa oferece? Ele permite construir vínculos automáticos entre diferentes partes do texto, pode conter anotações de diferentes tipos? Pode o leitor personalizar seu programa de leitura?"

p. 43
"o suporte digital permite novos tipos de leituras (e de escritas) coletivas. Um continuum variado se estende assim entre a leitura individual de um texto preciso e a navegação em vastas redes digitais no interior das quais um grande número de pessoas anota, aumenta, conecta os textos uns aos outros por meio de ligações hipertextuais."
/
"Não para retornar ao pensamento do autor, mas para fazer do texto atual uma das figuras possíveis de um campo textual disponível, móvel, reconfigurável à vontade, e até para conectá-lo e fazê-lo entrar em composição com outros corpus hipertextuais".

p. 44
"o hipertexto digital seria portanto definido como uma coleção de informações multimodais disposta em rede para a navegação rápida e "intuitiva"."
/
"não é mais o navegador que segue as instruções de leitura e se desloca fisicamente no hipertexto, virando as páginas, transportando pesados volumes, percorrendo com seus passos a biblioteca, mas doravante é um texto móvel, caleidoscópio, que apresenta suas facetas, gira, dobra-se e desdobra-se à vontade diante do leitor."

p. 45
"a hipertextualização dos documentos pode ser definida como uma tendência à indistinção, à mistura das funções de leitura e de escrita."
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"a dificuldade de escrever consiste em reler-se para corrigir-se, portanto em um esforço para tornar-se estranho ao próprio texto. Ora, a hipertextualização objetiva, operacionaliza e eleva à potência do coletivo essa identificação cruzada do leitor e do autor."

p. 47
"No limite, só há hoje um único computador, um único suporte para texto, mas tornou-se impossível traçar seus limites, fixar seu contorno. É um computador cujo centro está em toda parte e a circunferência em nenhuma, um computador hipertextual, disperso, vivo, pululante, inacabado, virtual, um computador de Babel. o próprio ciberespaço."

p. 48
"Cada indivíduo, cada organização são incitados não apenas a aumentar o estoque, mas também a propor aos outros cibernautas um ponto de vista sobre o conjunto, uma estrutura subjetiva. Esses pontos de vista subjetivos se manifestam em particular nas ligações para o exterior".
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"No ciberespaço, como qualquer ponto é diretamente acessável a partir de qualquer outro, será cada vez maior a tendência a substituir as cópias de documentos por ligações hipertextuais: no limite, basta que o texto exista fisicamente urna única vez na memória de um computador conectado à rede para que ele faça parte, graças a um conjunto de vínculos, de milhares ou mesmo de milhões de percursos ou de estruturas semânticas diferentes."
/
"No mundo digital, a distinção do original e da cópia há muito perdeu qualquer pertinência."
/
"Não há mais um texto, discernível e individualizável, mas apenas texto, assim como não há uma água e uma areia, mas apenas água e areia. O texto é posto em movimento, envolvido em um fluxo, vetorizado, metamórfico. Assim está mais próximo do próprio movimento do pensamento".

P. 49
"As formas econômicas e jurídicas herdadas do período precedente impedem hoje que esse movimento de desterritorialização chegue a seu termo."
/
"A interpretação, isto é, a produção do sentido, doravante não remete mais exclusivamente à interioridade de uma intenção, nem a hierarquias de significações esotéricas, mas antes à apropriação sempre singular de um navegador ou de uma surfista. O sentido emerge de efeitos de pertinência locais, surge na intersecção de um plano semiótico desterritorializado e de uma trajetória de eficácia ou prazer. Não me interesso mais pelo que pensou um autor inencontrável, peço ao texto para me fazer pensar, aqui e agora."

p. 50
"o texto digitalizado, fluido, reconfigurável à vontade, que se organiza de um modo não linear, que circula no interior de redes locais ou mundiais das quais cada participante é um autor e um editor potencial".

p. 53
"como numa multidão em que cada membro praticasse a psicologia das multidões".

p. 53 a 54
"sua dinâmica global, mesmo sendo caótica, com freqüência imprevisível e sujeita a arrebatamentos, seria antes convergente, no sentido em que (contrariamente à evolução biológica, por exemplo) não mantém simultaneamente abertos vários caminhos de diferenciação."

p. 54
"Até a segunda metade do século XX, uma pessoa praticava no final de sua carreira as competências adquiridas em sua juventude. Mais do que isto, transmitia geralmente seu saber, quase inalterado, a seus filhos ou a aprendizes. Hoje, esse esquema está em grande parte obsoleto. As pessoas não apenas são levadas a mudar várias vezes de profissão em sua vida, como também, no interior da mesma "profissão", os conhecimentos têm um cicio de renovação cada vez mais curto (três anos, ou até menos, em informática, por exemplo). Tornou-se difícil designar as competências "de base" num domínio."

p. 55
"O saber prendia-se ao fundamento, hoje se mostra como figura móvel. Tendia para a contemplação, para o imutável, ei-lo agora transformado em fluxo, alimentando as operações eficazes, ele próprio operação. Além disso, não é mais apenas uma casta de especialistas mas a grande massa das pessoas que são levadas a aprender, transmitir e produzir conhecimentos de maneira cooperativa em sua atividade cotidiana."
/
"os novos recursos chaves são regidos por duas leis que tomam pelo avesso os conceitos e os raciocínios econômicos clássicos: consumi-los não os destrói, e cedê-los não faz com que sejam perdidos."
/
"se transmito a você uma informação, não a perco, e se a utilizo, não a destruo."

p. 57
"Segundo a teoria matemática da comunicação, uma informação é um acontecimento que provoca uma redução de incerteza acerca de um ambiente dado."
/
"um fato inteiramente previsível nada nos ensina, enquanto um acontecimento surpreendente nos traz realmente uma informação."
/
"os atributos que até aqui associamos à virtualização: desprendimento de um aqui e agora particular, passagem ao público e sobretudo heterogênese."

p. 58
"a mensagem sobre o acontecimento é ao mesmo tempo e indissoluvelmente uma seqüência do acontecimento."

p. 61
"a hora uniforme do relógio não é mais a unidade pertinente para a medida do trabalho. Essa inadequação há muito era flagrante para a atividade dos artistas e dos intelectuais, mas hoje se estende progressivamente ao conjunto das atividades."

p. 62 a 63
"Como os produtores primários e os requerentes podem entrar diretamente em contato uns com os outros, toda uma classe de profissionais corre doravante o risco de ser vista como intermediários parasitas da informação (jornalistas, editores, professores, advogados, funcionários médios) ou da transação (comerciantes, banqueiros, agentes financeiros diversos) e tem seus papéis habituais ameaçados. Esse fenômeno é chamado a "desintermediação"."

p. 63
"Todo ato registrável cria efetivamente ou virtualmente informação, ou seja, numa economia da informação, riqueza."
/
"Assim como a virtualização do texto nos faz assistir à indistinção crescente dos papéis do leitor e do autor, também a virtualização do mercado põe em cena a mistura dos gêneros entre o consumo e a produção."

p. 64
"Abandonar totalmente qualquer pretensão à propriedade sobre os programas e a informação, como certos ativistas da rede propõem, seria arriscar-se a voltar aquém da invenção do direito autoral e da patente, à época em que as idéias suadas dos trabalhadores intelectuais podiam ser bloqueadas por monopólios ou apropriadas sem contrapartida por potências econômicas ou políticas."
/
"em vez de abandonar os direitos de propriedade sobre todas as formas de bens de software, o que equivaleria a uma espoliação descarada dos produtores de base, dos novos proletários que são os trabalhadores intelectuais, a tendência parece antes se orientar no sentido de uma sofisticação do direito autoral. Esse aperfeiçoamento se desenvolve em duas direções: passagem de um direito territorial a um direito de fluxo e passagem do valor de troca ao valor de uso."

p. 65
"Assim, a foto poderia ser copiada, empregada, difundida o quanto se quisesse, sem nenhuma limitação. Só que seria acionado automaticamente com a imagem, doravante líquida e ubíqua, o pequeno programa que registra a decodificação e efetua automaticamente um débito minúsculo na conta do consumidor e um crédito ínfimo na do autor ou do proprietário."

p. 66
"essas formulações são mais uma metáfora do que uma caracterização conceitualmente rigorosa."
/
"O livro que não leio me custa tão caro quanto o que leio."

p. 69
"Qualquer ato humano é um momento do processo de pensamento e de emoção de um megapsiquismo fractal e poderia ser valorizado e até remunerado enquanto tal. Se todos os atos pudessem ser captados, transmitidos, integrados a circuitos de regulação e devolvidos a seus produtores, e participassem deste modo de uma melhor informação global da sociedade sobre si mesma, a inteligência coletiva conheceria uma enorme mutação qualitativa da maior importância."

p. 70
"Três processos de virtualização fizeram emergir a espécie humana: o desenvolvimento das linguagens, a multiplicação das técnicas e a complexificação das instituições."
/
"A linguagem, em primeiro lugar, virtualiza um "tempo real" que mantém aquilo que está vivo prisioneiro do aqui e agora. Com isso, ela inaugura o passado, o futuro e, no geral, o Tempo como um reino em si, uma extensão provida de sua própria consistência. A partir da invenção da linguagem, nós, humanos, passamos a habitar um espaço virtual, o fluxo temporal tomado como um todo, que o imediato presente atualiza apenas parcialmente, fugazmente. Nós existimos."

p. 72
"o passado herdado, rememorado, reinterpretado, o presente ativo e o futuro esperado, temido ou simplesmente imaginado, são de ordem psíquica, existenciais. O tempo como extensão completa não existe a não ser virtualmente."

p. 74 a 75
"A concepção de uma nova ferramenta virtualiza uma combinação de órgãos e de gestos que só aparece, então, como uma solução especial, local, momentânea. Ao conceber uma ferramenta, mais do que nos concentrarmos sobre determinada ação em curso, içamo-nos à escala bem mais elevada de um conjunto indeterminado de situações. O surgimento da ferramenta não responde a um estímulo particular mas materializa parcialmente uma função genérica, cria um ponto de apoio para a resolução de uma classe de problemas. A ferramenta que seguramos na mão é uma coisa real, mas essa coisa dá acesso a um conjunto indefinido de usos possíveis."

p. 75
"Mais que uma extensão do corpo, uma ferramenta é uma virtualização da ação. O martelo pode dar a ilusão de um prolongamento do braço; a roda, em troca, evidentemente não é um prolongamento da perna, mas sim a virtualização do andar."

p. 77
"Os rituais, as religiões, as morais, as leis, as normas econômicas ou políticas são dispositivos para virtualizar os relacionamentos fundados sobre as relações de forças, as pulsões, os instintos ou os desejos imediatos. Uma convenção ou um contrato, para tomar um exemplo privilegiado, tornam a definição de um relacionamento independente de uma situação particular; independente, em princípio, das variações emocionais daqueles que o contrato envolve; independente da flutuação das relações de força."

p. 78
"A concórdia talvez não seja um estado natural".
/
"Por que a arte interessa a tanta gente embora seja tão difícil de descrever? Porque ela representa, por mais de uma razão, um ápice da humanidade."
/
"a arte está na confluência das três grandes correntes de virtualização e de hominização que são as linguagens, as técnicas e as éticas (ou religiões)."

p. 79
"A virtualização, em geral, é uma guerra contra a fragilidade, a dor, o desgaste. Em busca da segurança e do controle, perseguimos o virtual porque nos leva para regiões ontológicas que os perigos ordinários não mais atingem. A arte questiona essa tendência, e portanto virtualiza a virtualização, porque busca num mesmo movimento uma saída do aqui e agora e sua exaltação sensual. Retoma a própria tentativa de evasão em suas voltas e reviravoltas. Em seus jogos, contém e libera a energia afetiva que nos faz superar o caos. Numa última espiral, denunciando assim o motor da virtualização, problematiza o esforço incansável, às vezes fecundo e sempre fadado ao fracasso, que empreendemos para escapar à morte."

p. 81
"Arriscaremos uma resposta positiva a essa questão, mas apenas parcial e bastante geral. Ela não dispensa, em cada caso particular, nem uma descoberta audaciosa, nem uma construção coletiva longa e trabalhosa."
/
"A teoria que vamos apresentar, portanto, se permite reconhecer um caso de virtualização a posteriori, analisá-lo e apresentá-lo claramente, infelizmente não é um guia de invenção infalível."

p. 81 a 82
"A gramática é a arte de compor pequenas unidades significantes com elementos não significantes e grandes unidades significantes (frases, discursos) com pequenas."

p. 84
"o sentido de um artefato ou de uma ferramenta é o dispositivo que seríamos obrigados a empregar para obter o mesmo resultado se ele não tivesse sido inventado."

p. 85
"A invenção técnica abre possibilidades radicalmente novas cujo desenvolvimento acaba por fazer crescer um mundo autônomo, criação proliferante que não pode mais ser explicada por nenhum critério estático de utilidade."
/
"a produção de artefatos atinge o estágio retórico quando ela participa da criação de novos fins."

p. 85 a 86
"Uma visão estreita da informática, limitada à dialética, a reduz a um conjunto de ferramentas para calcular, escrever, conceber e comunicar mais depressa e melhor. A plena abordagem retórica descobre nela um espaço de produção e de circulação dos signos qualitativamente diferente dos anteriores, no qual as regras de eficácia e os critérios de avaliação da utilidade mudaram."

p. 90
"O esforço para instituir a ciência como máquina virtualizante foi provavelmente mais fecundo que a vontade de ater-se ao real ou de dizer a verdade."

p. 93
"O si e o outro formam um loop, o interior e o exterior passam continuamente a seu oposto, como num anel de Moebius."

p. 94
"A gramática separa elementos e organiza seqüências. A dialética faz funcionar substituições e correspondências. A retórica separa seus objetos de toda combinatória, de toda referência, para desdobrar o virtual como um mundo autônomo."
/
"A invenção suprema é a de um problema, a abertura de um vazio no meio do real."

p. 95
"Nós, seres humanos, jamais pensarmos sozinhos ou sem ferramentas."
/
"Pode-se falar de uma inteligência sem consciência unificada ou de um pensamento sem subjetividade?"

p. 95 a 96
"Tornamo-nos, dizem, os neurônios de um hipercórtex planetário, portanto é urgente esclarecer esses problemas e marcar as diferenças entre espécies de inteligência coletiva, em particular as que separam as sociedades humanas dos formigueiros e das colméias."

p. 97
"Jamais pensamos sozinhos, mas sempre na corrente de um diálogo ou multidiálogo, real ou imaginado."

p. 98
"as ferramentas não são apenas memórias, são também máquinas de perceber que podem funcionar em três níveis diferentes: direto, indireto e metafórico. Diretamente, lentes, microscópios, telescópios, raios-X, telefones, máquinas fotográficas, câmeras, televisões etc. estendem o alcance e transformam a natureza de nossas percepções. Indiretamente, os carros, os aviões ou as redes de computadores (por exemplo) modificam profundamente nossa relação com o mundo, e em particular nossas relações com o espaço e o tempo, de tal modo que se torna impossível decidir se eles transformam o mundo humano ou nossa maneira de percebê-lo. Enfim, os instrumentos e artefatos materiais nos oferecem muitos modelos concretos, socialmente compartilhados, a partir dos quais podemos apreender, por metáfora, fenômenos ou problemas mais abstratos."
/
"O universo de coisas e de ferramentas que nos cerca e que compartilhamos pensa dentro de nós de mil maneiras diferentes."

p. 99
"Pela biologia, nossas inteligências são individuais e semelhantes (embora não idênticas). Pela cultura, em troca, nossa inteligência é altamente variável e coletiva."
/
"É possível, com efeito, considerar os grupos humanos como "meios" ecológicos ou econômicos nos quais espécies de representações ou de idéias aparecem e morrem, se propagam ou regridem, competem entre si ou vivem em simbiose, conservam-se ou transformam-se."

p. 101
"a técnica propõe e os homens dispõem."

p. 102
"Os sistemas darwinianos apresentam uma capacidade de aprendizagem não dirigida ou (o que dá no mesmo do ponto de vista de uma teoria do espírito) de uma capacidade de autocriação contínua. Pelo jogo dialético das mutações, das seleções e da transmissão dos elementos selecionados, as máquinas darwinianas arrastam consigo seus ambientes no caminho de uma história irreversível."

p. 103
"A máquina darwiniana é ainda mais inteligente se funciona "fractalmente", em várias escalas ou níveis de criação encaixados."

p. 103 a 104
"Convém distinguir com cuidado entre a afetividade e a consciência. Um espírito pode ser inconsciente, como o espírito de certos animais, como uma parte considerável do espírito humano e, conforme veremos, como os "espíritos' que emergem de coletivos inteligentes. Quanto à afetividade, que pode ser confusa, inconsciente, múltipla, heterogênea, ela constitui contrariamente à consciência uma dimensão necessária do psiquismo e talvez até sua essência. Sem afetividade, o sistema considerado retorna à insensibilidade, à exterioridade e à dispersão ontológica do simples mecanismo. Um espírito deve ser afetivo, ele não é necessariamente consciente. A consciência é o produto da seleção, da linearização e da manifestação parcial de uma afetividade à qual ela deve tudo."

p. 104
"Interessa menos a nosso propósito decidir o que tem e o que não tem a ver com o psiquismo do que dar uma definição do psiquismo que possa se aplicar tanto a um espírito humano individual quanto a uma inteligência coletiva. um conceito de espírito que seja inteiramente compatível com um sujeito coletivo. // Um psiquismo integral, portanto capaz de afeto, pode ser analisado segundo quatro dimensões complementares: uma topologia, uma semiótica, uma axiologia e uma energética. Já evoquei essas quatro dimensões no capítulo sobre a virtualização da economia, desenvolvo-as agora mais extensamente. // 1. Uma topologia. O psiquismo é estruturado a cada instante por uma conectividade, sistemas de proximidades ou um 'espaço" específico: associações, ligações, caminhos, portas, comutadores, filtros, paisagens de atratores. A topologia do psiquismo está em transformação constante, certas zonas sendo mais móveis e outras mais fixas, algumas mais densas e outras mais frouxas. // 2. Uma semiótica. Hordas mutantes de representações, de imagens, de signos, de mensagens de todas as formas e todas as matérias (sonoras, visuais, táteis, proprioceptivas, diagramáticas) povoam o espaço das conexões. Ao circularem pelos caminhos e ao ocuparem as zonas da topologia, bordas de signos modificam a paisagem de atratores psíquicos. Por isso os signos, ou grupos de signos, podem também ser chamados agentes. Simetricamente, as transformações da conectividade influem sobre as populações de signos e de imagens. A topologia é ela mesma o conjunto das conexões ou relações, qualitativamente diferenciadas, entre os signos, mensagens ou agentes. // 3. Uma axiologia. As representações e as zonas do espaço psíquico estão ligadas a 'valores" positivos ou negativos segundo diferentes "sistemas de medidas". Esses valores determinam tropismos, atrações e repulsas entre imagens, polaridades entre zonas ou grupos de signos. Os valores são por natureza móveis e mutáveis, embora alguns também possam demonstrar uma estabilidade. // 4. Uma energética. Os tropismos ou valores associados às imagens podem ser intensos ou fracos. O movimento de um grupo de representações pode vencer certas barreiras topológicas (afrouxar certas ligações, criar outras, modificar a paisagem de atratores) ou, por falta de "força", permanecer aquém delas. O conjunto do funcionamento psíquico é assim irrigado e animado por uma economia "energética": deslocamentos ou imobilizações de forças, fixação ou mobilização de valores, circulações ou cristalizações de energia, investimento ou desinvestimento em representações, conexões etc. // Resulta do modelo que acabamos de esboçar em linhas gerais que o funcionamento psíquico é paralelo e distribuído em vez de seqüencial e linear. Um afeto, ou uma emoção, pode ser definido como um processo ou um acontecimento psíquico que põe em jogo pelo menos uma das quatro dimensões que acabamos de mencionar: topologia, semiótica, axiologia e energética. Mas, sendo essas quatro dimensões mutuamente imanentes, um afeto é, de maneira mais geral, uma modificação do espírito, um diferencial de vida psíquica. Simetricamente, a vida psíquica manifesta-se, como um fluxo de afetos."

p. 106
"Como diz Gilles Deleuze, o interior é uma dobra do exterior."
/
"um si, um si jamais definitivamente fechado mas sempre em desequilíbrio, em posição de abertura, de acolhimento, de mutação; um si cuja ponta fina é talvez a qualidade singular do processo de assimilação do outro e de heterogênese. Essa abertura começa na simples sensação, passa pela aprendizagem e o diálogo, culmina com o devir: quimerização ou transição para uma outra subjetividade."

p. 107 a 108
"A mensagem é ela mesma um agente afetivo para o espírito de quem a interpreta. Se o texto, a mensagem ou a obra funcionam como um espírito, é porque já são lidos, traduzidos, compreendidos, introduzidos, assimilados numa matéria mental e afetiva. Um sujeito transmutou uma série de acontecimentos físicos em mensagem significante, ou melhor, assim como o rei Midas que nada podia tocar sem transformá-lo em ouro, o espírito jamais pode apreender algo que não se transforme, exatamente por isso, em movimentos e dobras de um rico tecido colorido: em afetos. O que acabamos de dizer aqui das mensagens se aplica precisamente da mesma maneira a todos os elementos de nossa experiência, ao próprio mundo. Para nós, o mundo, nosso mundo humano, é um campo problemático, uma configuração dinâmica, um imenso hipertexto em constante metamorfose, atravessado de tensões, cinzento e pouco investido em certas zonas, intensamente investido e luxuosamente detalhado em outras. As proximidades geográficas, as conexidades causais clássicas são apenas um pequeno subconjunto das ligações de significação, de analogia e de circulação afetiva que estruturam nosso universo subjetivo. O universo físico é um caso particular do mundo subjetivo que o cerca, o impregna e o sustenta. O sujeito não é outra coisa senão seu mundo, com a condição de entender-se por este termo tudo o que o afeto envolve. Assim é pouco afirmar que o psiquismo está aberto para o exterior; ele é apenas o exterior, mas um exterior infiltrado, tensionado, complicado, transubstanciado, animado pela afetividade. O sujeito é um mundo banhado de sentido e de emoção."

p. 108
"não existem limites a priori para a eclosão de novos tipos de afetos, como tampouco existem limites para a produção de objetos ou de paisagens inéditas. Poder-se-ia mesmo falar de uma inventividade afetiva. A classificação ordinária das emoções (medo, amor etc.) apresenta portanto apenas uma lista restrita e bastante simplificada dos tipos de afetos."

p. 110
"há uma qualidade difundida em diversos graus em todos os tipos de espíritos mas que as sociedades humanas (e não mais os indivíduos) exemplificam melhor que as outras: a de refletir o todo do espírito coletivo, cada vez diferentemente, em cada uma de suas partes. Os sistemas inteligentes são "holográficos" e os grupos humanos são os mais halográficos dos sistemas inteligentes. Como as mônadas de Leibniz ou as ocasiões atuais de Whitehead, as pessoas encarnam, cada uma delas, uma seleção, uma versão, uma visão particulares do mundo comum ou do psiquismo global."

p. 110 a 112
"A noção de inteligência coletiva evoca irresistivelmente o funcionamento das sociedades de insetos: abelhas, formigas, cupins. No entanto, as comunidades humanas diferem profundamente dos cupinzeiros. // Primeira diferença, da qual decorrem todas as outras, a inteligência coletiva pensa dentro de nós, ao passo que a formiga é uma parte quase opaca, quase não holográfica, um elo inconsciente do formigueiro inteligente. Podemos usufruir inteligentemente da inteligência coletiva, que aumenta e modifica nossa própria inteligência. Contemos ou refletimos parcialmente, cada um à sua maneira, a inteligência do grupo. A formiga, em troca, tem apenas uma pequeníssima fruição ou visão da inteligência social. Não obtém dela um acréscimo mental. Obediente beneficiária, participa somente às cegas dessa inteligência. // Isto equivale a dizer, de uma maneira mais trivial, que o homem é (antes de tudo) inteligente, enquanto a formiga é, relativamente ao humano, estúpida. A formiga não somente recebe menos que o humano da inteligência social, como também, simetricamente, contribui para ela apenas numa fraca medida. Uma mulher ou um homem, no quadro de uma cultura, é capaz de aprender, de imaginar, de inventar e finalmente de fazer evoluir, mesmo que muito modestamente, as linguagens, as técnicas, as relações sociais que vigoram em seu ambiente, o que uma formiga estritamente submetida a uma programação genética dificilmente é capaz de fazer. Entre os insetos, somente a sociedade pode resolver problemas originais, ao passo que, entre os humanos, os indivíduos são em geral mais inventivas que certos grupos tais como as multidões ou as burocracias rígidas. A inteligência das sociedades humanas é variável e, no melhor dos casos, evolutiva, graças à natureza dos indivíduos que a compõem e, o que é a outra face de uma mesma realidade, das ligações, geralmente livres ou contratuais, que a tecem. Em troca, no quadro de uma determinada espécie de formigas, o funcionamento do formigueiro é fixo. // O estatuto do indivíduo num e noutro tipo de sociedade cristaliza e resume o conjunto das diferenças que os opõem. O lugar e o papel de cada formiga estão definitivamente fixados. No seio de uma espécie particular, os tipos de comportamentos ou as diferentes morfologias (rainhas, operárias, guerreiras) são imutáveis. As formigas (corno as abelhas e os cupins) estão organizadas em castas e as formigas da mesma casta são intercambiáveis sem perda. Em troca, as sociedades humanas não cessam de inventar novas categorias, os indivíduos passam de uma classe a outra e, sobretudo, é na verdade impossível reduzir urna pessoa a seu pertencimento a uma classe (ou a um conjunto de classes), pois cada indivíduo humano é singular. As pessoas, tendo seu próprio caminho de aprendizagem, encarnando respectivamente mundos afetivos e virtualidades de mutação social (mesmo mínima) diferentes, não são intercambiáveis. Os indivíduos humanos contribuem, cada um diferentemente e de maneira criativa, para a vida da inteligência coletiva que os ilumina em troca, ao passo que uma formiga obedece cegamente ao papel que lhe dita sua casta no seio de um vasto mecanismo inconsciente que a ultrapassa absolutamente. // Certas civilizações, certos regimes políticos tentaram aproximar a inteligência coletiva humana da dos formigueiros, trataram as pessoas como membros de uma categoria, fizeram crer que essa redução do humano ao inseto era possível ou desejável. Nossa posição filosófica, moral e política é perfeitamente clara: o progresso humano rumo à constituição de novas formas de inteligência coletiva se opõe radicalmente ao pólo do formigueiro. Esse progresso deve, ao contrário, aprofundar a abertura da consciência individual ao funcionamento da inteligência social e melhorar a integração e a valorização das singularidades criadoras que os indivíduos e os pequenos grupos humanos formam nos processos cognitivos e afetivos da inteligência coletiva. Tal progresso de maneira nenhuma é garantido, está sempre ameaçado de regressões. Antes de ser uma lei da história, trata-se de um projeto transmitido, enriquecido, reinterpretado a cada geração e infelizmente suscetível de esclerose ou de esquecimento."

p. 114
"O objeto comum suscita dialeticamente um sujeito coletivo."

p. 115
"A memória coletiva posta em ato no ciberespaço (dinâmica, emergente, cooperativa, retrabalhada em tempo real por interpretações) deve ser claramente distinguida da transmissão tradicional das narrativas e das competências, bem como dos registros estáticos das bibliotecas."

p. 117
"Tanto quanto a pesquisa utilitária de informação, é essa sensação vertiginosa de mergulhar no cérebro comum e dele participar que explica o entusiasmo pela Internet. Navegar no ciberespaço equivale a passear um olhar consciente sobre a interioridade caótica, o ronronar incansável, as banais futilidades e as fulgurações planetárias da inteligência coletiva. O acesso ao processo intelectual do todo informa o de cada parte, indivíduo ou grupo, e alimenta em troca o do conjunto. Passa-se então da inteligência coletiva ao coletivo inteligente."
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"o ciberespaço manifesta propriedades novas, que fazem dele um precioso instrumento de coordenação não hierárquica, de sinergização rápida das inteligências, de troca de conhecimentos, de navegação nos saberes e de autocriação deliberada de coletivos inteligentes."

p. 117 a 118
"Ou o ciberespaço reproduzirá o mediático, o espetacular, o consumo de informação mercantil e a exclusão numa escala ainda mais gigantesca que hoje. Esta é, a grosso modo, a tendência natural das "supervias da informação" ou da "televisão interativa". Ou acompanhamos as tendências mais positivas da evolução em curso e criamos um projeto de civilização centrado sobre os coletivos inteligentes: recriação do vínculo social mediante trocas de saber, reconhecimento, escuta e valorização das singularidades, democracia mais direta, mais participativa, enriquecimento das vidas individuais, invenção de formas novas de cooperação aberta".

p. 119
"simples de enunciar mas difícil de resolver."
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"Grupos humanos podem ser coletivamente mais inteligentes, mais instruídos, mais sábios, mais imaginativos que as pessoas que os compõem?"
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"Como coordenar as inteligências para que se multipliquem umas através das outras ao invés de se anularem? Há meio de induzir uma valorização recíproca, uma exaltação mútua das capacidades mentais dos indivíduos em vez de submetê-las a uma norma ou rebaixá-las ao menor denominador comum?"
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"se as pessoas são todas inteligentes à sua maneira, os grupos decepcionam com freqüência. Sabe-se que, numa multidão, as inteligências das pessoas, longe de se adicionar, tendem a se dividir. A burocracia e as formas de organização autoritárias asseguram uma certa coordenação, mas às custas da supressão das iniciativas e do aplainamento das singularidades."

p. 120
"Por que o 'mundo da cultura', no sentido burguês do termo, ou seja, os grupos humanos que produziram e desfrutaram a ciência, a filosofia, a literatura e as belas-artes, exerceu por tanto tempo tal atrativo? Provavelmente porque se aproximou, à sua maneira elitista e imperfeita, de um ideal da inteligência coletiva. Eis algumas das normas sociais, valores e regras de comportamento que regeriam (idealmente) o mundo da cultura: avaliação permanente das obras pelos pares e pelo público, reinterpretação constante da herança, inaceitabilidade do argumento de autoridade, incitação a enriquecer o patrimônio comum, cooperação competitiva, educação contínua do gosto e do senso crítico, valorização do julgamento pessoal, preocupação com a variedade, encorajamento à imaginação, à inovação, à pesquisa livre. Teremos começado a resolver numerosos problemas cruciais do mundo contemporâneo quando passarmos a pôr em prática um funcionamento 'culto" fora dos domínios e dos meios restritos onde este geralmente se instala."
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"O ideal da inteligência coletiva não é evidentemente difundir a ciência e as artes no conjunto da sociedade, desqualificando ao mesmo tempo outros tipos de conhecimento ou de sensibilidade. É reconhecer que a diversidade das atividades humanas, sem nenhuma exclusão, pode e deve ser considerada, tratada, vivida como "cultura', no sentido que acabamos de evocar. Em conseqüência, cada ser humano poderia, deveria ser respeitado como um artista ou um pesquisador numa república dos espíritos."

p. 121
"O problema não é decidir entre ser a favor ou contra a inteligência coletiva, mas escolher entre suas diferentes formas. Emergente ou imposta de cima? Respeitosa das singularidades ou homogeneizante? Inteligência que valoriza e põe em sinergia a diversidade dos recursos e das competências ou que os desqualifica em nome de uma racionalidade ou de um modelo dominante?"
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"Como, portanto, passar da inteligência coletiva, que é inerente à condição de humanidade, aos coletivos inteligentes, que otimizam deliberadamente seus recursos intelectuais aqui e agora? Como fazer sociedade de maneira flexível, intensa e inventiva, sem no entanto fundar o coletivo sobre o ódio ao estrangeiro, nem sobre um mecanismo vitimizador, nem sobre a relação com uma revelação transcendente ou com um chefe providencial? Como pôr em sinfonia os atos e os recursos das pessoas sem submetê-las a uma exterioridade alienante? Tal regime não se decreta, e certamente requer mais do que boa vontade."
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"Os atos dos indivíduos mal se distinguem, não chegam a se entrelaçar para fazer história ou memória, não se entrosam em nenhuma bifurcação irreversível. O indivíduo é afogado na massa dos torcedores, no ruído de fundo da multidão."

p. 122
"Nas arquibancadas, fazer sociedade é ser a favor e contra, torcer por um time, aplaudir os seus, vaiar os outros. // No campo, ao contrário, não é suficiente detestar o time adversário. É preciso estudá-lo, adivinhá-lo, prevê-lo, compreendê-lo. Sobretudo é preciso coordenar-se com a própria equipe em tempo real, reagir de maneira fina e rápida "como um só homem", embora sejam vários."
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"Os espectadores têm necessidade de jogadores, as equipes não têm necessidade de espectadores."
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"um provérbio chinês diz que o dedo mostra a lua e que o idiota olha o dedo."

p. 123
"Para desempenhar seu papel antropológico, o objeto deve passar de mão em mão, de sujeito a sujeito, e subtrair-se à apropriação territorial, à identificação a um nome, à exclusividade ou à exclusão."

p. 124
"No entanto, a bola tem alguma afinidade com a relação de dominância, por ser ao mesmo tempo submissa e centro da atenção. Num certo sentido, ela substitui o chefe, o subordinado ou a vítima, mas virtualizando-os. Longe de fixar uma relação estável de dominância, a bola mantém, ao contrário, uma relação cooperativa (na mesma equipe) e competitiva (entre as equipes) igualitária e sempre aberta. Claro que o jogo sagra campeões e deixa vencidos, mas esses estatutos duram apenas entre as partidas. Nenhuma hierarquia instituída pesa durante o jogo: a circulação da bola as suspende."

p. 125
"uma aptidão especial para o jogo é uma das principais características de nossa espécie."

p. 126
"Fluida, partilhável, anônima, a moeda é a antítese do território. É o que exprime de maneira figurada o famoso provérbio segundo o qual o dinheiro não tem cheiro. Nenhum indivíduo, por mais malcheiroso que seja, pode marcar o dinheiro com sua identidade ou com seus atos."

p. 127
"A inventividade científica consiste em fazer surgir verdadeiros objetos, isto é, vetores de comunidades inteligentes, capazes de interessar outros grupos que irão colocar em circulação, enriquecer, transformar e até mesmo fazer proliferar o objeto inicial, transformando assim sua identidade na comunidade."

p. 128 a 129
"O que torna a Internet tão interessante? Dizer que ela é "anarquista" é um modo grosseiro e falso de apresentar as coisas. Trata-se de um objeto comum, dinâmico, construído, ou pelo menos alimentado, por todos os que o utilizam. Ele certamente adquiriu esse caráter de não-separação por ter sido fabricado, ampliado, melhorado pelos informaras que a princípio eram seus principais usuários."

p. 129
"A aspereza dos debates em torno do caráter mercantil ou não mercantil da Internet tem profundas implicações antropológicas. Um dos orgulhos da comunidade que fez crescer a Net é ter inventado, ao mesmo tempo que um novo objeto, uma maneira inédita de fazer sociedade inteligentemente. A questão não é portanto banir o comércio da Internet (por que proibi-lo?), mas preservar urna maneira original de constituir coletivos inteligentes, diferente daquela que o mercado capitalista induz. Os cibernautas não têm necessidade de dinheiro porque sua comunidade já dispõe de um objeto constitutivo, virtual, desterritorializado, produtor de vínculo e cognitivo por sua própria natureza. Mas, por outro lado, o ciberespaço é perfeitamente compatível com o dinheiro ou outros mediadores imanentes, ele inclusive faz crescer consideravelmente a força virtualizante e a velocidade de circulação dos objetos monetários e científicos. Ao acolher nas ligações circulantes coletivos inteligentes, a Net é um acelerador de objetos, um virtualizador de virtuais. No que se refere a isto, provavelmente ainda não se viu nada igual."

p. 131
"O acontecimento raro não é a imposição de um contrato ou o estabelecimento de uma regra, mas a eclosão de um objeto."
/
"Poder-se-ia contar a história da humanidade, a começar por seu nascimento, como uma sucessão de aparecimentos de objetos, cada um deles indissociável de uma forma particular de dinâmica social. Então se veria que todo novo tipo de objeto induz um estilo particular de inteligência coletiva e que toda mudança social conseqüente implica uma invenção de objeto. Na duração antropológica, os coletivos e seus objetos são criados pelo mesmo movimento."

p. 133
"Se você não é um animal, se sua alma é mais virtual, mais separada da inércia que a de um macaco ou de um bisão, certamente é porque ela pode atingir a objetividade. Nossa subjetividade se abre ao jogo dos objetos comuns que tecem num mesmo gesto simétrico e complicado a inteligência individual e a inteligência coletiva, como o anverso e o reverso do mesmo tecido, bordando em cada face a marca indelével e flagrante do outro."

p. 140 a 141
"Se a virtualização for bloqueada, a alienação se instala, os fins não podem mais ser reinstituídos, nem a heterogênese cumprida: maquinações vivas, abertas, em devir, transformam-se de súbito em mecanismos mortos. Se for cortada a atualização, as idéias, os fins, os problemas tornam-se bruscamente estéreis, incapazes de resultar na ação inventiva. A inibição da potencialização conduz infalivelmente ao sufocamento, ao esgotamento, à extinção dos processos vivos. Se for impedida a realização, enfim, os processos perdem sua base, seu suporte, seu ponto de apoio, eles se desencarnam. Todas as transformações são necessárias e complementares umas das outras."

p. 143 a 144
"Para estabelecer a ponte entre a substância e o acontecimento, poder-se-ia criar a hipótese de que o acontecimento seria uma espécie de substância molecular, miniaturizada, fragmentada até o ato pontual. Simetricamente, a substância não seria senão a aparência de uma sociedade de acontecimentos, uma multidão coordenada de microexperiências grosseiramente agregadas na imagem de uma "coisa": em suma, acontecimento molar."

p. 144
"Aliás, por mais duráveis que sejam, não podem as coisas mais estáveis ser interpretadas como acontecimentos em relação a uma duração que as ultrapassa, como a existência de montanhas na escala da história da Terra?"
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"Talvez caiba considerar o dualismo da substância e do acontecimento como o yin e o yang na filosofia chinesa clássica: haveria passagem, transformação perpétua de um no outro. Cada um deles exprime uma face não eliminável e complementar dos fenômenos, como a onda e a partícula na física quântica."

p. 145
[ver diagrama-resumo]

p. 147
"Gosto do que é frágil, evanescente, único e carnal. Aprecio os seres e os lugares singulares, insubstituíveis, as atmosferas ligadas para sempre a situações e a momentos. Estou convencido de que parte essencial da moral consiste simplesmente em aceitar existir no mundo, em não fugir, em estar presente para os outros e para si."
/
"o sofrimento de submeter-se à virtualização sem compreendê-la é uma das principais causas da loucura e da violência de nosso tempo."

p. 148
"Longe de circunscrever o reino da mentira, o virtual é precisamente o modo de existência de que surgem tanto a verdade como a mentira. Não há verdadeiro e falso entre as formigas, os peixes ou os lobos: apenas pistas e engodos. Os animais não têm pensamento proposicional. Verdade e falsidade são indissociáveis de enunciados articulados; e cada enunciado subentende uma questão. A interrogação é acompanhada de uma estranha tensão mental, desconhecida entre os animais. Esse vácuo ativo, esse vazio seminal é a essência mesma do virtual. Lanço a hipótese de que cada salto a um novo modo de virtualização, cada alargamento do campo dos problemas abrem novos espaços para a verdade e, por conseqüência, igualmente para a mentira. Viso a verdade lógica, que depende da linguagem e da escrita (dois grandes instrumentos de virtualização), mas também outras formas de verdade, talvez mais essenciais: as que são expressas pela poesia, religião, filosofia, ciência, técnica, e finalmente as humildes e vitais verdades que cada um de nós testemunha em sua existência cotidiana."

p. 149
"A arte não consiste mais, aqui, em compor uma "mensagem", mas em maquinar um dispositivo que permita à parte ainda muda da criatividade cósmica fazer ouvir seu próprio canto. Um novo tipo de artista aparece, que não conta mais história. É um arquiteto do espaço dos acontecimentos, um engenheiro de mundos para bilhões de histórias por vir. Ele esculpe o virtual."
/
"Porque a heterogênese pode degenerar em alienação. Porque a invenção de uma nova velocidade se deteriora facilmente em simples aceleração. Porque a virtualização acaba às vezes por desqualificar o atual. Porque a colocação em comum, que é a operação característica da virtualização, oscila muito freqüentemente entre o confisco e a exclusão. É preciso uma sensibilidade de artista para perceber em estado nascente essas diferenças, essas defasagens, nas situações concretas."

p. 150
"Seres humanos, pessoas daqui e de toda parte, vocês que são arrastados no grande movimento da desterritorialização, vocês que são enxertados no hipercorpo da humanidade e cuja pulsação ecoa as gigantescas pulsações deste hipercorpo, vocês que pensam reunidos e dispersos entre o hipercórtex das nações, vocês que vivem capturados, esquartejados, nesse imenso acontecimento do mundo que não cessa de voltar a si e de recriar-se, vocês que são jogados vivos no virtual, vocês que são pegos nesse enorme salto que nossa espécie efetua em direção à nascente do fluxo do ser, sim, no núcleo mesmo desse estranho turbilhão, vocês estão em sua casa. Benvindos à nova morada do gênero humano. Benvindos aos caminhos do virtual!"

Elaborado por Eduardo Loureiro Jr. em novembro de 2000

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