O MINOTAURO EM SEU LABIRINTO

- a experiência como uma viagem de formação ou a aprendizagem do desaprender -

 

Fabiano dos Santos

 

 

 

Este é o labirinto de Creta. Este é o labirinto de Creta cujo centro foi o Minotauro. Este é o labirinto de Creta cujo centro foi o Minotauro que Dante imaginou como um touro com cabeça de homem e em cuja rede de pedra perderam-se tantas gerações. Este é o labirinto de Creta cujo centro foi o Minotauro que Dante imaginou como um touro com cabeça de homem e em cuja rede de pedra perderam-se tantas gerações, como María Kodama e eu nos perdemos. Este é o labirinto de Creta cujo centro foi o Minotauro que Dante imaginou como um touro com cabeça de homem e em cuja rede de pedra perderam-se tantas gerações, como María Kodama e eu nos perdemos naquela manhã e continuamos perdidos no tempo, esse outro labirinto.

J.L. Borges – O Labirinto (Atlas, 1984)


ÂNGULO 1 – O Monstro do Lago Outro

 

Zeus não poderia desatar as redes

De pedra que me cercam. Olvidado

Dos homens que antes fui; sigo pelo odiado

caminho de monótonas paredes

que é meu destino. Retas galerias

que se curvam em círculos secretos

depois de anos. Parapeitos

que gretou a usura dos dias.

No pálido pó tenho decifrado

rastros que temo. Chega-me pelo ar trazido

nas côncavas tardes um bramido

ou o eco de um bramido desolado.

Sei que na sombra há Outro, cuja sorte

É fatigar as longas soledades

Que tecem e destecem este Hades

e ansiar meu sangue e devorar minha morte.

Buscamo-nos os dois. Quem dera

fosse este o último dia da espera.

J.L. Borges – O Labirinto (Elogio da Sombra, 1969)

 

Ele é o Minotauro. Ser monstruoso com corpo de homem e cabeça de touro. Pura vingança de Posêidon. Tivesse Minos sacrificado o touro branco em honra ao deus do mar, nada disso teria acontecido. Mas Minos ficou encantado com a beleza do animal e guardou-o em seu rebanho. Furioso, Posêidon tramou a vingança: despertou na rainha Pasífae uma paixão louca pelo touro. Ela não sabia mais o que fazer. Suas noites eram habitadas por sonhos eróticos. Seus dias eram preenchidos em pensar numa maneira de unir-se ao animal. Ela pede ajuda ao arquiteto Dédalo, que fabrica uma vaca de madeira e couro. “Disfarçada de vaca, irá deslizar como uma novilha sob o touro”. Pasífae se esconde dentro da invenção. Seu coração dá pulos dentro do corpo inventado. Seu desejo pelo touro é maior do que seu amor por Minos. O touro estava pastando no campo. Pasífae respira forte. O touro percebe as ancas da vaca inventada. Mas só Pasífae e Dédalo sabem que é uma invenção. O touro pensa que é uma vaca e fornica com a mulher, como se vaca ela fosse. Dessas núpcias nasce o Minotauro. Nasce Ele: o ser monstruoso. Envergonhado, Minos manda Dédalo construir um palácio-prisão para encerrar o Minotauro no labirinto. Quem nele entrar, nunca haverá de sair. Logo após seu nascimento, o Minotauro foi levado ao labirinto. E lá ficou.

Ele é a fera. Touro que é um homem e cuja estranha / Forma plural dá horror à maranha / De interminável pedra entretecida. Ele – de estranha forma plural. De estranha morada plural.

Qual a imagem do Minotauro, senão a imagem do Outro? O Minotauro é o Outro. Mas o que significa a “imagem do outro” ou sua fabricação? Jorge Larrosa escreve: “Poderíamos dizer, para começar, que se trata da imagem dos loucos feitas pelas pessoas com uso da razão que, afinal, são as que definem o sentido da razão e da sem-razão; as imagens das crianças feitas pelas pessoas adultas que são as que determinam o que é a maturidade e a imaturidade; a imagem dos selvagens feita pelas pessoas civilizadas que são as que definem o que é a civilização e a barbárie; a imagem dos estrangeiros feita pelas pessoas nativas que são as que definem o que é ser ou não ser membro de uma comunidade; a imagem dos delinqüentes feita pelas pessoas de bem que são as que determinam o que é ser ou não ser uma pessoa dentro da lei; a imagem dos marginalizados feita pelas pessoas integradas que são as que definem o que é ser ou não ser uma pessoa corretamente socializada; a imagem dos deficientes feita pelas pessoas normais que são as que definem o que é a normalidade e a anormalidade.” (Larrosa, 1998: 7-8)

Mas, se o Minotauro é o Outro, pelos olhos de quem o enxergamos? Passeando pela literatura, podemos encontrá-lo nas páginas e encruzilhadas do tempo.

André Peyronie faz esse passeio: “Literalmente, o Minotauro conhece, por conseguinte, duas grandes fases: uma da encarnação do horror e outra da monstruosidade problemática. Na Antigüidade greco-romana o homem-touro não constitui um tema literário autônomo: inicialmente, ele é o monstro que foi morto por Teseu ou que foi concebido por Pasífae. Sua monstruosidade é tão pouco questionável que, na Idade Média, tanto pode expressar a figura do diabo, como a de um monstro entre outros muitos, independentemente de seus antecedentes legendários. Na Renascença e na época clássica, ele será reinscrito no mito grego, mas num papel que visa apenas a destacar o de Teseu. Será a partir do século XIX que a besta infame, mas do que só imaginar, fará sistematicamente pensar”. (Peyronie, 1998: 649-50) Isso é visível em Nietzsche, que vê no Minotauro a imagem de um outro saber. “O labirinto é o avesso do mundo, que a linguagem, ao simulá-lo, dissimula, fechando o caminho que conduz à verdade original. Fundamentalmente, o movimento do saber se dirige ao Minotauro e não à salvação pelo fio, que conduz para fora. Nietzsche afirma ter uma ´particular curiosidade´ pelo labirinto, uma vontade de ´travar conhecimento com o sr. Minotauro´; àqueles que esperam salvar-se com a ajuda do fio, ele aconselha que se enforquem com ele”. (Peyronie, 1998: 648)    

A partir do século XX parece que muda a perspectiva da imagem do Minotauro. Em Potomac de J. Cocteau – ele é descoberto como belo; no texto Le point de vue du Minotaure (O ponto de vista do Minotauro) de A. Fraigneau – além de sua beleza, a revelação de que o Minotauro não passa de um reflexo de Teseu: “o Minotauro nada mais é do que uma forma tomada por Teseu desde que entrara no labirinto”; em Qui n´a pas son Minotaure? (Quem não tem seu Minotauro?) de M. Yourcenar – o Minotauro torna-se a imagem de si mesmo que Teseu descobre ao descer no labirinto: “Teseu não percebe que está no interior de si próprio e que as vozes familiares que escuta são a expressão de muitas fraquezas e múltiplos egoísmos. Não sabe  reconhecer em si mesmo o Minotauro. Depois de vencida a prova, ele declara que a besta era invisível e que não há como provar o combate.”; no Teseu de Kazantzakis – “quando as portas do labirinto se abrem quem surge primeiro é Kouros, o Minotauro transformado num homem maior, mais belo, mais impassível do que Teseu”; em Jorge Luis Borges o Minotauro é quem tem a fala – no conto A casa de Astérion, o Minotauro  descreve sua morada – o labirinto – enquanto espera pelo dia de sua redenção: o  encontro com Teseu (Peyronie, 1998: 648-50); em Monteiro Lobato – O Minotauro – se lambuza com os bolinhos de Tia Nastácia até dormir, tamanha sua gulodice e obesidade.   

Será que o Minotauro deixou de ser monstro depois que comeu os bolinhos de Tia Nastácia? Será que ele não passa do reflexo de Teseu – uma forma tomada pelo herói para explorar o labirinto? Ou seria o Minotauro o próprio labirinto?

Por que seria o Minotauro um Outro? Por sua condição de monstro ou por sua  estranha morada? O fato é que não haveria um labirinto sem a figura do monstro. “A idéia de uma casa feita para que as pessoas se percam talvez seja mais extravagante que a de um homem com cabeça de touro, mas as duas se ajudam e a imagem do labirinto convém à imagem do minotauro. Fica bem que no centro de uma casa monstruosa haja um habitante monstruoso.” (Borges/ O Caixote, 2001)

O monstro é o labirinto. O labirinto é o monstro que pode devorar ou levar à redenção. Para tanto, é preciso explorar um percurso cheio de dificuldades, passar por ritos iniciáticos, por  provas e vencer o Minotauro para alcançar a glória. Mas nunca foi fácil vencer um monstro – guardião de portais e de tesouros. Principalmente, quando esse tesouro pode ser o próprio rito de passagem (a viagem) ou a experiência formativa. Quem entra num labirinto, jamais sairá o mesmo. Se sair. 

“O monstro – como revela Chevalier – surge também da simbologia dos ritos de passagem: ele devora o homem velho para que nasça o homem novo. O mundo que ele guarda e ao qual introduz não é o mundo exterior dos tesouros fabulosos, mas o mundo interior do espírito, ao qual não se tem acesso a não ser por meio de uma transformação interior”. (Chevalier, 1992: 615) Noutras palavras, entrar no labirinto é uma experiência de trans-formação; uma viagem cheia de peripécias e aventuras, tal qual uma odisséia – repleta de complicações variadas e inesperadas. Uma viagem entre bifurcações, simetrias e  encruzilhadas, onde o viajante nem sonha com o que vai encontrar pela frente. Seu trajeto é tortuoso e incerto.

Jorge Larrosa desenvolve a idéia da formação como uma viagem aberta: “Porque leva cada um até si mesmo, na formação não se define antecipadamente o resultado. A idéia de formação não se entende teleologicamente, em função de seu fim, em termos do estado final que seria sua culminação. O processo da formação está pensado, melhor dizendo, como uma aventura. E uma aventura é, justamente, uma viagem aberta em que pode acontecer qualquer coisa, e na qual não se sabe se vai chegar, nem mesmo se vai se chegar a algum lugar. De fato, a idéia de experiência, essa idéia que implica um se voltar para si mesmo, uma relação interior com a matéria de estudo, contém em alemão, a idéia de viagem. Experiência (Erfahrung) é, justamente, o que se passa numa viagem (Fahren), o que acontece numa viagem. E a experiência formativa seria, então, o que acontece numa viagem e que tem a suficiente força como para que alguém se volte para si mesmo, para que a viagem seja uma viagem interior”. (Larrosa, 1999: 52)

Uma viagem interior! Na geografia e no tempo. Sendo assim, o monstro pode ser a imagem de um certo eu. O Minotauro pode ser o Teseu. Teseu já era o Minotauro. No entanto, isso pode não passar de uma divagação perigosa; procurando por respostas.

Entrar no labirinto não é, definitivamente, entrar numa escola – onde o caminho da formação já está traçado a priori, de maneira linear e cumulativa; em função de um fim predeterminado. Entrar no labirinto é aventurar-se, perder-se num espaço de educação plural que pode levar a pessoa a uma experiência de si mesmo como Outro. 

A partir disso, pode-se pensar: em que fase encontra-se, hoje, o Minotauro? Na encarnação do horror ou na monstruosidade problemática? Será que ele não passa de um monstro nas cartas de RPG? Ou ainda serve como metáfora do conhecimento e imagem de um outro saber, como pensou Nietzsche?

Imagens de um Outro saber. Mas que outro saber é esse? Teria, o Minotauro, conhecimentos matemáticos, lingüísticos, científicos? Que conhecimentos poderiam ser travados com o Sr. Minotauro? O que ele aprendeu dentro de sua morada de interminável pedra entretecida, que poderia ser útil na vida dos homens? O que poderia nos ensinar um prisioneiro solitário – abandonado por sua mãe logo após seu nascimento? Nada! Mil vezes nada – gritariam os educadores de plantão. O Minotauro é um ser sem educação, sem civilização. O Minotauro é o Outro. E o outro nada tem a ensinar. Ao outro, resta aprender: tornar-se educado e civilizado dentro dos padrões e esquemas codificados de ler, perceber, viver no mundo. A supremacia da cultura sobre a natureza, do homem sobre o animal, da razão sobre o sentimento, da linearidade sobre a não-linearidade. Nessa perspectiva, o touro tem que se transformar em homem, assim como a criança deve se transformar em um adulto maduro.

Imagens de um outro saber. Sendo o Minotauro um Outro, o que seria o labirinto? O labirinto seria também um Outro; espaço que deve ser evitado – por suas dificuldades, (lugar propício ao erro, à confusão, ao perder-se) – em nome de uma suposta linearidade e de um saber reto e seguro.

Imagens de um outro saber. O que teria um homem meio touro – dentro de um labirinto – a nos ensinar? Nada! Mas, talvez, tivesse a nos aprender. Além da cultura, a natureza; além do homem, o animal; além do pensamento, o sentimento, a sensação; além da linearidade, a não-linearidade. (O que interessa aqui, não é mais como se ensina as coisas, mas como se aprende: maneiras de aprender e estar no mundo).

Não esqueça, o labirinto é sua casa. O Minotauro não é professor; sua imagem é de um aprendiz. O Minotauro não é arquiteto; sua imagem é de um viajante errante. Rosenstiehl, traça uma diferença entre essa duas figuras: “Se o viajante errante experimenta uma sensação de infinito no labirinto, o arquiteto conhece-o como finito. A sua engenhosidade doseou o efeito de engano e o efeito de sedução nos amaranhados, ramificações, desvios e regressos. O viajante é absorvido pela procura; e a vertigem que lhe invadiu o espírito irá dissipar-se graças a uma exploração mais profunda. O labirinto é humano.”( Rosenstiehl, 1988: 251)

O labirinto é lugar de educação para o Minotauro – seu lugar de estudo. Jorge Larrosa descreve bem essa imagem: “O labirinto é a figura que serve como o lugar do estudo. Mas não se trata, aqui, do labor intus, circular e unívoco, aquele que não tem bifurcação - bivia - e que tem apenas um caminho que leva inevitavelmente ao centro, do centro ao último círculo, daí novamente ao centro e, assim, indefinidamente. O labirinto que acolhe o estudante não tem um ponto central que seja o lugar do sentido, da ordem, da claridade, da unidade, da apropriação e da reapropriação constante. O dédalo que o estudante percorre, multívoco, prolífico e indefinido, é um espaço de pluralização, uma máquina de desestabilização e dispersão, um aparelho que desencadeia um movimento infinito de sem-sentido, de desordem, de obscuridade, de expropriação. O estudante dispersa-se nos meandros de um labirinto e sem periferia, sem marcas, indefinido, potencialmente infinito.” (Larrosa, 1999: 201)

O labirinto como lugar de estudo. Eis uma metáfora instigante para pensar a figura do Minotauro como a imagem de um outro saber. Um outro saber que vai além do lógico-matemático-lingüístico; que vai além de uma interdisciplinaridade. Onde não há um ponto mais central e fundamental do que qualquer outro. Um outro saber, cuja imagem poética, encontra-se nos versos de Fernando Pessoa – “Mas isso (triste de nós que trazemos a alma vestida), / isso exige um estudo profundo, / uma aprendizagem do desaprender” – e no criançamento das palavras de Manoel de Barros – “Nos fundos do quintal era muito riquíssimo o nosso dessaber”.

Dessaber! Desaprender! Quem sabe, é chegado a hora de viajar com a vista desarmada, a alma nua e o corpo errante. Adentrar-se no labirinto provido, não de espada ou de fio, mas de vazios. O vazio como um silêncio – num sentido de escuta e atenção. O vazio como um silêncio – num sentido de delicadeza para com a palavra. O vazio como um silêncio – num sentido de escuta e de abertura para com o encontro e o diálogo. O vazio como um despojamento, como escreve Larrosa: “O vazio é o despojamento dos hábitos e dos rituais da existência, o desnudado dos modos habituais de significação e de experiência. O que não está povoado, em suma, pelos hábitos da história pessoal e coletiva”. (Larrosa, 2000: 58).

 

êéçèëìíîóôóíîìëèçéê

 

O labirinto como espaço próprio para a exploração e para o caminhar. Território que desdobra-se numa forma de olhar – com olhos e espírito de criança – o mundo. Por vezes, é preciso um olhar distraído para enxergar as coisas ao redor. Um olhar de quem vagabundeia. Um olhar de quem deriva. Um olhar de quem brinca. Um olhar de criança que “cultiva as formas aparentemente irrelevantes”. Willi Bolle comenta sobre esse cultivar na obra Contramão de Walter Benjamin: “As formas ´aparentemente irrelevantes´ não merecem maior atenção do adulto, envolvido pelas exigências da vida profissional; elas ficam abaixo do limiar de sua percepção. Mas são uma parte essencial da cultura da criança. Significativamente, um grupo de textos de Contramão que fala desse universo é intitulado ´Ampliações´ - como se através desse prisma o adulto fosse capaz de reencontrar-se com o pequeno mundo que há muito tempo deixou. Os rituais das crianças prefiguram os dos adultos, como se pode ilustrar com vários fragmentos do livro, focalizando, por exemplo, o ritual da viagem”. (Bolle, 1994: 298)

Nesse ritual de viagem, a criança tem acesso à linguagem primordial, não somente dos homens, mas também dos pássaros e das árvores. Linguagem essa, que é abandonada pelos adultos depois que crescem. Crescer, tornou-se assim, uma maneira codificada e fechada de ver o mundo. E a viagem, que antes cultivava as formas aparentemente irrelevantes, passa a ser uma viagem pedagogicamente tutelada, perdendo a possibilidade de torná-la numa aventura de formação. E, para ser uma aventura, a idéia de formação – como acontece hoje – precisa ser pensada em outros  movimentos, além desses que conhecemos na escola ou seio da família; onde as crianças precisam ser ensinadas dentro de esquemas pedagógicos para, só assim, se tornarem gente de “verdade”. E por quê não pensar o avesso? Dar bunda-canastras no pensamento e despertar com crianças, não só aprendendo, mas ensinando coisas para os adultos, para seus professores, para seus pais, para elas mesmas. Seja em casa, na escola, nos centros de culturas ou em qualquer outro lugar. E por quê não pensar o encontro? Oficinas para adultos ministradas por crianças. Aulas de “qualquer coisa” dadas por  alunos para seus professores. (Não é apresentação de trabalho nem atividade para nota).

Que essas possibilidades possam ser vivenciadas, experimentadas em espaços múltiplos de educação e não apenas palavras para compor um discurso pedagógico moderninho. Ou será que as crianças têm que ver – para sempre – o mundo com os olhos dos adultos? Olhar para aonde os dedos dos adultos indicam e apontam a direção? E os olhares da infância, o que poderiam nos ensinar? O que poderiam nos aprender? Fernando Pessoa escreveu essa sensação com a alma do poeta Alberto Caeiro (Pessoa, 1992: 210-12)

“A mim a criança ensinou-me tudo.

Ensinou-me a olhar para as coisas.

Aponta-me para todas as coisas que há nas flores.

Mostra-me como as pedras são engraçadas

Quando a gente as tem na mão

E olha devagar para elas.

(...)

E a criança tão humana que é divina

É esta minha quotidiana vida de poeta,

E é porque ele anda sempre comigo que eu sou poeta sempre,

E que o meu mínimo olhar

Me enche de sensação,

E o mais pequeno som, seja o que for,

Parece falar comigo.

 

A Criança Nova que habita onde vivo

Dá-me uma mão a mim

E a outra a tudo que existe

E assim vamos os três pelo caminho que houver,

Saltando e cantando e rindo

E gozando o nosso segredo comum

Que é o de saber por toda a parte

Que não há mistérios no mundo

E que tudo vale a pena.

 

A Criança Eterna acompanha-me sempre.

A direção do meu olhar é o seu dedo apontando.

O meu ouvido atento alegremente a todos os sons

São as cócegas que ele me faz, brincando, nas orelhas.

 

Damo-nos tão bem um com o outro

Na companhia de tudo

Que nunca pensamos um no outro,

Mas vivemos juntos e dois

Com um acordo íntimo

Como a mão direita e a esquerda.

 

Ao anoitecer brincamos as cinco pedrinhas

No degrau da porta de casa.

Graves como convém a um deus e a um poeta,

E como se cada pedra

Fosse todo um universo

E fosse por isso um grande perigo para ela

Deixá-la cair no chão.

(...)

Depois ele adormece e eu deito-o

Levo-o ao colo para dentro de casa

E deito-o, despindo-o lentamente

E como seguindo um ritual muito limpo

E todo materno até ele estar nu.

 

Ele dorme dentro da minha alma

E às vezes acorda de noite

E brinca com os meus sonhos.

Vira uns de pernas para o ar,

Põe uns em cima dos outros

E bate as palmas sozinho

Sorrindo para o meu sono.

 

Quando eu morrer, filhinho,

Seja eu a criança, o mais pequeno.

Pega-me tu ao colo

E leva-me para dentro da tua casa.

Despe o meu ser cansado e humano

E deita-me na tua cama.

E conta-me histórias, caso eu acorde,

Para eu tornar a adormecer.

E dá-me sonhos teus para eu brincar.

Até que nasça qualquer dia

Que tu sabes qual é.”

 

Ensina-me a olhar para as coisas. A direção de meu olhar é seu dedo apontando. E que o meu mínimo olhar me encha de sensação, e o mais pequeno som fale comigo. Dê-me uma mão a mim e a outra a tudo que existe. E assim vamos os três pelo caminho que houver. Pelo labirinto que houver. Mostra-me como as pedras são engraçadas e ensina-me a olhar devagar para elas como se cada pedra fosse um universo. 

O olhar da criança percebe cada coisa como um universo. É um olhar distraído, despojado dos esquemas pré-montados e fechados de ler as coisas ao redor. É um olhar de quem caminha lendo as coisas enquanto a viagem se desdobra. Um caminhar que vê o mundo como um livro que se abre em qualquer página. Tal qual o Livro de Areia, (Borges, 1998: 80-1) que não tem princípio ou fim:

“Pediu-me que procurasse a primeira folha.

Apoiei a mão esquerda sobre a portada e abri com o dedo polegar quase pegado ao indicador. Tudo foi inútil: sempre se interpunham várias folhas entre a portada e a mão. Era como se brotassem do livro.

— Agora procure o final.

Também fracassei; mal consegui balbuciar com uma voz que não era a minha:

— Isto não pode ser.

Sempre em voz baixa, o vendedor de bíblias me disse:

— Não pode ser, mas é. O número de páginas deste livro é exatamente infinito. Nenhuma é a primeira; nenhuma, a última. Não sei por que estão numeradas desse modo arbitrário. Talvez para dar a entender que os termos de uma série infinita admitem qualquer número.

Depois, como se pensasse em voz alta:

— Se o espaço é infinito, estamos em qualquer ponto do espaço. Se o tempo é infinito, estamos em qualquer ponto do tempo.”

Se pensarmos dessa maneira, o mundo é um labirinto. No livro: “O número de páginas deste livro é exatamente infinito. Nenhuma é a primeira; nenhuma, a última.”; No labirinto: Cada bifurcação gera outra que desdobra-se em outras tantas. Cada corredor desemboca em outros corredores. Não há um fim; No livro: “Se o espaço é infinito, estamos em qualquer ponto do espaço. Se o tempo é infinito, estamos em qualquer ponto do tempo.”; No labirinto: Não existe um ponto (galeria, corredor, encruzilhada, bifurcação) que seja mais fundamental do que qualquer outro. Tudo está interligado. Seu espaço-temporal de exploração é infinito.

Esse espaço-temporal infinito é propício para as crianças. Quem sabe mais – do que qualquer outro ser – viajar no tempo e no espaço? Na brincadeira, a criança perde a noção da hora e o espaço deixa de ser aquilo que é. Na brincadeira, a criança perder-se. Sendo assim, o labirinto é um espaço lúdico; um jogo e uma invenção que se desdobram nesse perder-se infantil. Gagnebin descreve essa manifestação: “No limiar do labirinto, a criança não manifesta medo; pelo contrário, o desejo de exploração predomina como se soubesse, confusamente, que só poderá se reencontrar se ousar perder-se”. (Gagnebin, 1994: 103)

Ousar perder-se! Qual a escola que ousaria tanto? É sintomático em nossas escolas – mesmo com o modismo do construtivismo – o medo de experimentar e a incapacidade de criar, inventar e aventurar-se em situações educacionais diversas. No percurso educacional escolar há um ponto central – lugar específico da ordem, do conteúdo, do sentido – que o aluno deve seguir linearmente para poder torna-se um adulto maduro e capaz de ter sucesso na vida profissional. Diferente de um espaço educacional labiríntico, que possibilitaria um aventurar-se em espaços de pluralização e significados múltiplos de um saber-ensino-aprendizagem indefinido, que vão além, muito além, do saber e do espaço escolar. Tal qual o Livro de Areia; tal qual uma brincadeira onde se perde a noção do espaço e do tempo. Diferente das  escolas, onde há horas, ou melhor, minutos cronometrados para a criança brincar. Onde não se pode perder tempo nem adentrar-se em qualquer outro labirinto.  

 

êéçèëìíîóôóíîìëèçéê

 

Adentrar-se no labirinto! E o Minotauro, estará lá? Seja como o outro (o monstro), seja como o eu (o viajante), seja como a exploração (outro saber) ou seja como o próprio percurso (o labirinto)?

Não existe uma resposta. Mas há bifurcações. Quem sabe, com um Minotauro nos esperando. Como susto? Como espelho? Como um perder-se? Como um encontrar-se? Como um começo? Como um fim? Como um caminhar? Como uma exploração/investigação do conhecimento? Como uma experiência de formação? Como um esperar sem fim?

Pensando com Nietzsche, “o movimento do saber se dirige ao Minotauro e não à salvação pelo fio, que conduz para fora”. Mas isso, também, não é uma reposta. Talvez, e apenas talvez, não passe de uma inspiração, um trecho, uma bifurcação, uma variação de percurso.

Não esperes por nada nem pelo monstro. A experiência com o labirinto é o caminhar. Ou, na prosa de Guimarães Rosa – O que importa não é o início nem o fim, mas a travessia. O andar.

A experiência com o labirinto é a metáfora da viagem. É aventurar-se por entre corredores e encruzilhadas. Portanto, a dimensão da experiência é a possibilidade do perder-se; é “conhecer” o labirinto por dentro; é a idéia da formação não em função de seu fim, mas como um processo ou uma aventura. Nesse percurso, caminhar é a mesma coisa que se aventurar. Uma viagem movida pela fascinação ao desconhecido.

Ouça! Escutas os passos? Será o Minotauro ou as batidas do coração do viajante? Não esperes por ele... não esperes...

(...)

Não esperes que o rigor de teu caminho

Que teimosamente se bifurca em outro,

Que teimosamente se bifurca em outro,

Tenha fim.

J.L. Borges – Labirinto (Elogio da Sombra, 1969)

 


ÂNGULO 2 – Divagações de um Minotauro

 

O ano me tributa meu pasto de homens

E na cisterna há água.

Em mim se estreitam os caminhos de pedra.

De que posso queixar-me?

Nos entardeceres

Pesa-me um pouco a cabeça de touro.

J.L. Borges – Astérion (O Ouro dos Tigres, 1972)

 

Sou o Minotauro. Um touro quase-humano. Ou, se você preferir; um humano quase-touro. Mas não penso muito sobre isso em minhas caminhadas. Reflito, às vezes, sobre a condição de monstro a que fui reduzido pelo mito. Uma aberração fabulosa que, de certa maneira, diverte-me um pouco. Fabuloso monstro sou eu. Mas se sou monstro porque sou touro é porque também sou humano. Essas divagações não são a minha distração predileta. O que me distrai mesmo é a minha casa. Eu moro no labirinto. Esse “edifício construído para confundir os homens” ao longo de sua existência. Morada construída em Creta. Mas “nem em Cnossos nem nos livros existe o menor vestígio de um labirinto concreto”. O que faz de minha morada um lugar múltiplo: o labirinto tanto pode ser visível como invisível, tanto pode ser real como imaginário; tanto pode ser universal como pessoal; tanto pode ser físico como mental.

Vivo entre corredores e encruzilhadas. Enganam-se aqueles que pensam que vivo sentado em um trono, bem no centro do labirinto, esperando sete moças e sete rapazes para um banquete. Coitados! Uma aventura de exploração em minha casa, e logo perceberão que não há um centro no labirinto. Porque o seu centro é em qualquer lugar e em lugar nenhum. Todas as partes da casa existem muitas vezes, qualquer lugar é outro lugar.

Muitos pensam que sou o prisioneiro da arquitetura de Dédalo. Poucos imaginam que, – na verdade ou na fantasia – o viajante perene do labirinto sou eu. Aquele que nunca o contemplou do alto – como fez Dédalo com seu filho Ícaro, na ocasião da fuga  – nem precisou do fio de Ariadne, como fez Teseu. A minha experiência com o labirinto é o caminhar. O que importa não é o início nem o fim, mas a travessia. O andar. Sou tomado por essa idéia durante noites e dias, na vigília e nos sonhos. No entanto o labirinto nunca está pronto. Ele se desdobra diante dos passos de quem o percorre.

O labirinto é a minha formação. Eu, que nunca freqüentei uma escola, gosto de pensá-lo como o lugar próprio para o meu estudo. Mas, ao contrário dos alunos da escola, não possuo um mapa, um livro didático. Percorro o labirinto com a vista desarmada. Tal qual uma criança, os meus olhos estão quase sempre distraídos. Os jogos e as brincadeiras que invento servem de recreação com o tempo – “esse outro labirinto”. Desenho nas paredes, dou bunda-canastras nos pensamentos, brinco de esconde-esconde pelos corredores. Tudo por pura distração, sem nenhuma preocupação pedagógica ou educativa. Apenas, exercícios de ser criança.

Quase sempre me encontro perdido dentro de minha própria casa. Para espantar ou enganar a solidão, o meu espírito é tomado pelo desejo de aventura e de exploração. O labirinto é assim, como livros ou caminhos que possibilitam a viagem. Não uma viagem linear com um único caminho que leva inevitavelmente a um centro pré-estabelecido. O labirinto não é uma escola fundamentada numa obsessão pedagógica, onde primeiro se estabelece um caminho reto, para depois ensinar/aprender a caminhar, retamente, nesse caminho – que leva a um conhecimento seguro e moralmente ideal.

A viagem é a própria constituição da experiência na exploração – que se dá no percurso infindo – do labirinto; que é, para mim, que moro nele, uma terra desabitada. Dispensa qualquer tipo de esquemas de percepção codificados e prontos. Nele, faço exercícios no vazio. Nele vou me constituindo.

Falo de uma viagem aberta, que não pode estar antecipada – a viagem de formação como uma aventura. Falo de uma viagem interior, como alguém que volta para si mesmo, experimentando tal qual uma criança, uma maneira própria de caminhar, de ver as coisas, de ler o mundo. O labirinto é o mundo. O mundo é o labirinto. Entendeu agora, por que nunca me senti um prisioneiro. Se entrelaço os fios de uma narrativa, ela serve apenas como um estratagema – assim como o fio de Penélope -  de uma história sem fim, sobre perguntas do que há em cada um como experiência do mundo, que pode se converter em si mesmo e num diferente, num outro. Mas tudo isso não passa de distrações de um Minotauro de fome antropófaga. Nelas, às vezes sonho sendo Teseu. Mas a vigília me confunde e, penso que o sonho é dele – o herói que anda com uma espada na mão e um fio na outra. Para quê? Para contemplar-quebrar o espelho ou para contar uma história quando sair de minha casa?
ÂNGULO 3 – Entre veredas e bifurcações

 

Não haverá nunca uma porta. Estás dentro

E o alcácer abarca o universo

E não tem nem anverso nem reverso

Nem externo muro nem secreto centro.

Não esperes que o rigor de teu caminho

Que teimosamente se bifurca em outro,

Que teimosamente se bifurca em outro,

Tenha fim. É de ferro teu destino

Como teu juiz. Não aguardes a investida

Do touro que é um homem e cuja estranha

Forma plural dá horror à maranha

De interminável pedra entretecida.

Não existe. Nada esperes. Nem sequer

A fera, no negro entardecer.

                        J.L. Borges – Labirinto (Elogio da Sombra, 1969)

           

!
Um rapaz grego, do segundo tributo ateniense a Creta, estava cansado de tanto caminhar no labirinto. Mesmo assim, caminhava sem parar, entre veredas e mais veredas. Por mais que houvesse bifurcações, ele só enxergava um caminho reto, que por ele pensava seguir. O rapaz procurava o centro do labirinto. Era essa a sua obsessão e busca. Nada mais o interessava. Quando enfim, viu o Minotauro tomando banho de sol  em um dos pátios, perguntou sem medo nem vacilo:
— Onde fica o centro?

            O Minotauro respondeu, com uma voz sonolenta:

            — Não há um centro em minha casa.

 

"

            Outro ano, um homem explorava o labirinto. Já estava ali há meses, mas não sentia fome. Ele era tomado pelo desejo de exploração. Media todos os seus passos, fazia cálculos e mais cálculos, marcava com um sinal (em forma de n) cada encruzilhada que passava, como se estivesse indicado a leitura de um livro com o marcador de página. Fazia isso metodicamente. Seu único medo era o de se perder. O que o alimentava era a garantia da evasão, do retorno. Quando estava ciente que faltava pouco para terminar sua exploração, encontrou o Minotauro deslizando o dedo na letra n, encontrada numa encruzilhada que ele pensara nunca ter posto os pés. O Minotauro olhou para o homem e disse num tom de inocência:

— É infinita a minha morada.

O homem morreu de fome.

 

!

Uma vez surgiu um homem dizendo que era arquiteto. Mas não era Dédalo. Dizia-se amigo dele e que roubara o mapa do labirinto enquanto Dédalo esculpia,  – distraidamente – mais uma estátua em tributo a Hércules. Findou que veio para o palácio-prisão como castigo. Não trazia o desenho do mapa em suas mãos. Mas dizia ter o mapa por inteiro em sua cabeça. O labirinto para ele era finito. Sentia-se seguro dentro dele. Pois sabia, que, mais cedo ou mais tarde, encontraria seu fim com a mesma facilidade que encontraria seu começo. Num certo entardecer, o arquiteto viu o Minotauro contemplando, sonhadoramente, o pôr-de-sol. Quando se aproximou, o homem-touro sussurrou em seu ouvido uma frase mais ou menos assim:

— Quem faz o labirinto é o viajante e não o arquiteto.

Parecia que não estava contando nenhum segredo.   

 

"

Certo dia entrou mais uma donzela no labirinto. Ela tomou um susto logo que entrara. Pois o Minotauro estava na porta principal. Embora todos saibam que não há uma porta principal no labirinto. O número de entradas e de saídas é igual ao infinito. Com o susto, a donzela desmaiou e foi levada para uma das galerias, pelos braços fortes do Minotauro. Ele observava seu sono com vagar e olhar adolescente. A moça dormia e sonhava que fora levada pelo Minotauro em seus braços para o centro do palácio e dançava algo com ele. Quando enfim, ela se acordou, o Minotauro dormia ao seu lado, sonhando que levava uma moça na garupa de seu cavalo – viajando pelas veredas do mundo.

Dizem que nesse dia, o Minotauro não queria acordar mais nunca.  

!

Um homem cego foi condenado a explorar o labirinto de Creta. Na entrada, largou a sua bengala e seguiu os passos da simetria do lugar. Numa das galerias, o Minotauro tomava banho na cisterna. Viu o cego passar cantarolando algo que ele não entendia. No décimo quarto dia, o cego saiu do labirinto. Todos ficaram embasbacados com a façanha do cego.

— Como você, conseguiu? — queriam saber todos.

— Muito simples — respondeu o cego — fiquei o tempo todo cantando e brincado de ciranda com o labirinto.

E o labirinto é circular? — perguntou um dos homens.

— Não sei. Isso eu esqueci de perguntar para o Minotauro.

 

"

Outra vez apareceu um mancebo. Dizendo vir de Atenas para matar o Minotauro. Ele era muito jovem. Ainda tinha cara de menino. Por trás de sua coragem, escondia-se a lembrança do leito de sua mãe. Quando viu o homem com cara de touro, tremeu de medo e ficou. Mudo, tentava falar alguma coisa. Mas antes que abrisse a boca, o Minotauro proferiu:

                Eu estou aqui desde menino.

 

!

Um dia, uma donzela apareceu ao Minotauro com um livro na mão, dizendo que sua casa era uma caverna e que ele precisava ser educado. Sair do labirinto para conhecer a luz da civilização. Ela era professora em Atenas. O Minotauro a comeu com os olhos, deliciosamente. Com todas as letras. O livro ficou no chão, demarcando a galeria. Dizem que o nome do livro era “A Republica” de Platão e todo vento que passava lia “A Caverna”. 

 

"

— Se você tivesse... se você tivesse cabeça... se você tivesse cabeça de homem... seria mais... seria mais inteligente. — Disse certa vez um filósofo ateniense para o Minotauro, antes de cair morto de medo de morrer.

 

!

                O medo daquele homem não era o medo de enfrentar o Minotauro. O que o atormentava era a simetria e o caos do labirinto. Que para ele, era o verdadeiro monstro.

 

"

Havia tempo que ele já estava no labirinto. Já passara por desvios, subira e descera escadas. Dormira em corredores onde haviam cisternas. Emaranhava-se nas ramificações e pensava que já tinha passado por ali, mais de mil vezes. Tentava recordar alguma marca, algum vestígio que garantisse a sua passagem. Foi quando ouviu uma voz:

— Não adianta! Você não vai recordar. Cada bifurcação gera outra que desdobra-se em outras tantas. Cada corredor desemboca em outros corredores.

Disse a voz que parecia com a de um Minotauro.

 

!

Quando Dédalo foi preso com seu filho Ícaro no labirinto, dizem que Teseu já tinha matado o Minotauro e libertado Atenas do domínio de Creta.  Mas todas as noites Ícaro sonhava com o fantasma do monstro, sobrevoando a  maranha de pedra. Não contava o sonho para seu pai sob pena de ser chamado de medroso. Até que um dia contou. Desde então, Dédalo começou a observar com mais atenção o vôo das gaivotas ao sabor da brisa.

 

"

            Numa tarde de muito sol, cochilava o Minotauro num pátio com uma cisterna. De repente surgiu duas crianças que brincavam de esconde-esconde por entre as galerias e corredores do labirinto. O Minotauro nunca tinha visto aquilo antes. De quando em vez era que apareciam algumas moças ou rapazes vindos de Atenas como tributo. Ele coçou os olhos para ver se não estava sonhando. Não! Não estava sonhando. O som das crianças eram do mundo da vigília. O Minotauro se escondeu, com medo de assustá-las . Até que uma delas o encontrou e gritou:

            — Agora é a sua vez de nos procurar.

            — Vocês não têm medo de mim? — perguntou o Minotauro.

            — Não! — responderam em uníssono, as crianças.

—Nem medo de se perderem no labirinto?

            — Não, Sr. Minotauro. A gente brinca de se perder todos os dias. Nós somos o limiar do labirinto.

            — E como vocês conseguem voltar para suas casas?

            — Com olhares distraídos. Ora bolas!

 

!

Numa noite de muita chuva, o Minotauro gritou com uma voz de trovão:

            — Estou per-di-do!

            O som ecoou tão alto que chegou aos ouvidos de Dédalo. Dizem que foi a partir daí que ele teve a primeira intuição de um fio. Mas, nesse tempo, Ariadne nem sequer sabia quem era Teseu. Pasífae, naquela noite, choramingou baixinho com medo de acordar Minos.

 

"

                “O labirinto é uma intricada construção de caminhos sinuosos de tal forma emaranhados que, uma vez em seu interior, ninguém conseguia encontrar a saída.” Dizem que, com essas palavras extraídas de um sonho de Minos, Dédalo arquitetou todo o labirinto. O fio de Ariadne e as asas de cera foram imaginações vindouras.  

 

!

Naquela noite, o céu estava cheio de estrelas. Com insônia, Minos se levantou e foi passear no labirinto que mandara construir para encerrar o Minotauro. O silêncio tomava conta do mundo. De repente, Minos foi tomado por uma visão: o Minotauro deitado na relva, contando estrelas com os olhos. Quase que Minos sentia a solidão que o Minotauro sentia. Quando voltou para o palácio – pois ele tinha o mapa do labirinto – as estrelas não o deixavam dormir.

 

"

A solidão despertou no Minotauro, a habilidade de sonhar. Ele sonha tanto, que nem sabe mais as horas em que está dormindo ou só fingindo um sono. Perderia as horas do tempo, se fosse contar todos esses sonhos. Mas tem um que sempre o habita: o dia em que virá seu redentor.

!

Numa noite ou num meio-dia, não sabe-se ao certo, o Minotauro acordou-se assustado e suando frio. Tinha febre. Dizem que aquele dia, foi a primeira vez que ele sonhou com seu redentor. Um viajante sem rosto que estava cada vez mais perto. Mas sempre que acordava, o Minotauro não conseguia lembrar do sonho com clareza, muito menos do rosto do viajante. Apenas um fio e uma espada brumosa não saíam de sua cabeça.

 


BIBLIOGRAFIA

 

BARROS, Manoel de. Livro sobre nada. Rio de Janeiro:Record, 1997.

 

BARROS, Manoel de. Exercícios de ser criança. São Paulo: Salamandra, 1999.

 

BOLLE, Wille. Fisiognomia da Metrópole Moderna: Representações da História em Walter Benjamin. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 1994.

 

BORGES, Jorge Luis. Obras completas volumes: 1, 2 e 3. São Paulo: Globo, 1998. 

 

BORGES, Jorge Luis. O livro dos seres imaginários. In: Site O Caixote: www.abordo.com.br/ocaixote/caixote/seres_minotauro.htm

 

GAGNEBIN, Jeanne Marie. História e narração em Walter Benjamin. São Paulo: Perspectiva: FAPESP: Campinas, SP: Editora da Universidade de Campinas, 1994. (Coleção estudos: 142).

 

IMAGENS DO OUTRO / Jorge Larrosa; Nuria Pérez de Lara, organizadores. Petrópolis, RJ: Vozes, 1998.

 

LARROSA, Jorge. Pedagogia Profana: danças, piruetas e mascaradas. Belo Horizonte: Autêntica, 1999.

 

LOBATO, Monteiro. O Minotauro. São Paulo: Brasiliense, 1997. (26.ª edição).

 

MINOTAURO. In: DICIONÁRIO de mitos literários. Verbete escrito por André Peyronie. Direção do professor Pierre Brunel. Tradução Carlos Sussekind et al.. 2. ed. Rio de Janeiro: José Olympio, 1998.

 

PESSOA, Fernando. Obra Poética. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1992.

 

ROSENSTIEHL, Pierre. “Labirinto”. In: Enciclopédia Einaudi, v.13. Lisboa: Portugal: Imprensa Nacional / Casa da Moeda, 1988.