Universidade Federal do Ceará
Programa de Pós-Graduação em Educação - Doutorado
Disciplina: Correntes Modernas da Filosofia da Ciência
Professor: André Haguette

Com a faca e o capitão nas mãos
Andréa Havt

Não é a mesma coisa perguntar para uma criança o que ela quer ser quando crescer ou para que ela quer crescer. Mas certamente uma e outra envolvem noções do que é ser humano. O Samuel, filho de 4 anos do nosso amigo Paulo Barguil, prefere coisas bem concretas e quer crescer para usar bigode, dirigir e usar faca para comer. Quando eu era criança, queria ser inteligente para poder conversar. Invejava minha irmã que devorava livros e se mantinha sempre muito bem informada sobre o que acontecia no mundo. Desejava, mas não conseguia ser como ela, que já circulava tranqüilamente entre os adultos, mesmo ainda sendo criança, enquanto eu alimentava a fama de tímida e sensível, enfurnada numa rede ouvindo música.

Já Seu Emanuel, um desses vizinhos que vira família, dizia não ter tido tempo para pensar em futuro, gostava de brincar e muito cedo começou a ajudar o pai na roça, caminho que lhe parecia natural seguir. Mas acabou fazendo curso superior em administração, seguindo carreira em uma grande empresa e até conhecendo outros países. Conseguiu, por esforço próprio, e diferente de todo o resto da família, adquirir algumas poucas propriedades e ganhar dinheiro suficiente para garantir boa educação também para sua mulher e seus quatro filhos, com oportunidade para que esses também pudessem viajar de vez em quando. Não mais para a Europa, como acontecia no seu tempo, mas para os Estados Unidos, nova preferência nacional.

Só havia uma coisa que os benefícios do mundo burguês não conseguira transformar na vida rude que Seu Emanuel levava, antes de se mudar para a Capital na esperança de encontrar um bom emprego: seus hábitos à mesa. O Samuel certamente desconfiaria da sua humanidade se o visse comer; como eu desconfiava, lá no fundinho da minha rede, da sua capacidade de ter-se formado em uma universidade. Seus filhos sempre reclamavam e ficavam ainda mais irritados quando levavam visitas menos íntimas para o almoço, refeição em que se cumpria todo o ritual nada civilizado do chefe da família. Caldo de feijão tomado diretamente no prato fundo que depois recebia uma quantidade transbordante de comida devorada numa só respiração com a ajuda de uma colher. Carne ou peixe era diretamente com a mão e só eram bem comidos depois de sugado o tutano, depois de chupada toda a espinha. Mas Seu Emanuel continuava comendo como se a queixa não fosse com ele. Até que se comportava quando o ambiente não era sua casa, comia mais pausadamente, usava meio sem jeito o guardanapo, substituía a colher pelo garfo... só não conseguia aderir à faca, o que fazia com que sua mulher rezasse antes de cada festa com comida para que não tivesse nenhum prato que o obrigasse a comer com as mãos.

Mas Seu Emanuel teve seu momento de glória. Uma amiga de sua filha mais velha ficou encantada com seu jeito despojado, tomou-o por revolucionário, fez discurso à mesa contra a aristocracia capitalista mal disfarçada em burguesia igualitária, o consumismo promovido como liberdade e democracia, a falsa moral repressora mal lavada de etiqueta social. O prato do dia de Seu Emanuel era capitão, um bolinho de feijão, farinha e banana amassado na mão. A visita não teve dúvida: meteu a mão na massa. Seu Emanuel assistia como se não fosse com ele, não se alterou nem quando os filhos aderiram ao almoço-manifesto. O capitão virou hábito ao menos semanal, apesar de não ter eliminado as caras de nojo quando ouviam o som das espinhas de peixe sendo chupadas, ou viam as mãos lambuzadas sendo limpas na toalha da mesa. Foi em um dia desses da semana que apareceu um dos irmãos de Seu Emanuel que comentou com deboche ao ver a família amassar unida o capitão: - Ô coisa boa é ter dinheiro, compra até vergonha! Seu Emanuel parou surpreendentemente de comer, levantou as sobrancelhas em direção ao irmão como se o recriminasse: - Não entregue logo agora o meu segredo.

 

Fonte: http://www.patio.com.br/labirinto