Universidade Federal do Ceará
Programa de Pós-Graduação em Educação - Doutorado
Disciplina: Correntes Modernas da Filosofia da Ciência
Professor: André Haguette

"Conhecer"
Andréa Havt

Na sua casa tinha uma enciclopédia chamada "Conhecer"? Foi dela que tirei todos os trabalhos do meu tempo de escola. Copiados ainda em letra legível e capas desenhadas. Hoje conhecer só cabe em rede mundial e há quem pense que ficou mais fácil porque não exige sequer o trabalho da cópia ou mesmo da digitação, basta a impressão. Mas conhecer ficou mais complexo, ou complicado, que colher frutas maduras em uma árvore frondosa. Porque as árvores são muitas e exigem ao menos uma escolha de onde se vai colher as frutas. Porque não é suficiente poder subir na árvore. Porque só se come uma fruta uma vez. Porque as árvores não cessam de virar sementes e novas árvores. Coisas óbvias demais para não exigir uma longa história até serem percebidas. Hoje todo o processo influi no gosto da fruta. Desde o motivo que leva a desejar uma fruta à forma de comê-la; desde o tempo de adubar a terra até o consumo em suco, em doce, sorvete ou roubada no quintal do vizinho. Como diz o Minotauro Fabiano: "Cada cajá tem um gosto diferente de cajá".

Conhecer não é mais uma coleção de coisas encadernadas em capa dura cor de vinho. Conhecer é permitir-se transformar a partir do outro, coisa ou ser, bicho ou gente. É, então, encontro, porque o outro é cajá em várias bocas. É construção pela capacidade humana de interiorizar e estabelecer pontos de vista, ou pontos de gosto. É inacabamento e incompletude. Se dizemos que vamos em busca de algo essencial, temos de considerar que a própria essência pode mudar enquanto a buscamos. Conhecer não tem sido ético, tem sido poder e instrumento. Mas o poder criou um mundo tão grande que não pode dar conta da própria criação e aí conhecer pode escapar ao poder e virar outra criação. Conhecer é dialético. Pode ser sinal do imperialismo e pode ser possibilidades.

No meu primeiro texto falei da ciência como algo feminino que se manifestava numa escrita masculina. Numa de suas observações, o André falou da ciência tendo sido concebida masculina: "saber para poder". Foi uma felicidade ler o Bachelard e encontrar uma ciência muito mais relacional no método. Ajudou a vê-la muito menos prepotente em relação a outras formas de conhecimento. Diferenciada enquanto forma específica de conhecer, mas relativa enquanto uma forma possível de conhecer. Tudo é comunicação e a ciência é uma das linguagens possíveis. Posso alimentar com maior tranqüilidade a idéia de que na academia as formas diferenciadas de saber podem conviver.

Há quem diga que não são os homens, mas os vírus que dominam o mundo. Porque são eles que têm a capacidade e maior flexibilidade para transformar-se e virar outra gripe. Mas será que é isso que queremos? Virar doença para contaminar a todos feito uma verdade poderosa, difícil de ser combatida? Ser parasita que usa o que é vivo no outro, como hospedeiro, apenas para reproduzir-se? Conhecer é luta por poder ou é crescimento? É ato de morte, certamente. Mas morte enquanto diálogo: transformações criativas provocadas por encontros. Não morte-fim-do-outro: dominação.

A internet, de onde se tiram trabalhos fáceis para a escola, nos coloca a questão do fim da autoria e, portanto, do fim do poder sobre a informação. O conhecimento é uma rede que se faz de segmentos que se podem ligar das formas mais variadas. É o usuário que estabelece o caminho a ser percorrido nessa rede. Não existe mais um ponto fundamental e não se pode mais definir traçados fixos para se chegar a um objetivo pré-determinado. A Lúcia Leão, em O Labirinto da Hipermídia, adverte: usar a internet como armazenamento de informações é apropriação pobre da mídia. "É preciso que se recupere o sentido de enciclopédia enquanto agkuklios paidea, 'aprendizagem que põe o saber em ciclo' (Edgar Morin), e que se deixe de lado o sentido meramente acumulativo de informações." Conhecer não é mais uma enciclopédia empoeirada na estante da minha casa.

 

Fonte: http://www.patio.com.br/labirinto