Universidade Federal do Ceará
Programa de Pós-Graduação em Educação - Doutorado
Disciplina: Correntes Modernas da Filosofia da Ciência
Professor: André Haguette

Crime e castigo
Andréa Havt

Qual a diferença entre um aluno rasurar uma lista de chamada e um doido roubar sua garrafinha de água mineral? Qual a diferença entre bater no próprio filho e baterem no seu filho? Qual a diferença entre queimar um mendigo que dormia numa praça e matar alguém em um assalto?...

Primeiro dia de aula numa nova disciplina, fui logo prevenida na secretaria para ter maior cuidado com a lista de chamada que alguns alunos haviam rasurado numa outra turma, na disciplina anterior. Fiquei imaginando que professor seria esse que fez com que os alunos chegassem ao ponto de ter de violar um documento. Como sempre tive um relacionamento muito tranqüilo com meus alunos e não costumo ter essa fama de carrasca, tomei por certo que não precisaria sair todo intervalo carregada de coisas. Recreio é hora do lanche, da conversa fiada, de esticar o corpo quadrado da carteira... Tratei logo de comentar o acontecido, explicar meus motivos para fazer a chamada, na esperança de evitar tamanha chateação, inclusive de ter de passar todas as informações para uma nova lista em caso de rasura. Estava lá eu, toda satisfeita de professora boa praça, explicando que precisava da chamada para acompanhar melhor as atividades que iríamos desenvolver em alguns dias, dando uma de compreensiva para o caso de faltas necessárias, mas falando da importância da presença porque as atividades seriam vivenciadas e não eram coisas que se encontravam em livros... Depois desse blablablá todo já dá para deduzir que rasuraram minha chamada, mas acredito que não dê para imaginar minha cara de decepção. Pior que no dia seguinte teríamos uma aula de campo com as outras turmas e não daria para conversar sobre o assunto. Teria de segurar o sapo engasgado na garganta por dois dias, correndo o perigo de esfriar a raiva ou do sapo virar um zoológico inteiro de mágoa guardada.

Mas nada como um dia entre dois outros... A aula de campo foi no Passeio Público, que elas conheciam, de fama ou de passar do outro lado da rua, como lugar de prostitutas e outros marginais. Não sei se foi azar ou sorte, mas no meio da aula um homem que elas tomaram por doido chegou de mansinho e pegou uma garrafa de água mineral que estava ao lado de uma das alunas. Ela tomou irritada e daí em diante ficou todo mundo com medo do homem com o estilingue na mão. O medo na verdade era anterior: de serem vistas em lugar suspeito, de serem assaltadas, de serem agredidas pelas prostitutas... Elas só precisavam de uma boa desculpa e tiveram, porque o tal doido não deixou mais a gente em paz.

Dia seguinte fomos conversar sobre a aula de campo. Aproveitei para desengasgar aquele sapo que não virou zoológico mas também não virou príncipe. E eu, além de professora doida que leva os alunos a lugares perigosos, fui vestida de carrasca logo na primeira argumentação de desculpa para a rasura na lista. Parecia óbvio, mas a aluna se defendeu atacando: que os professores não são compreensivos, que aluno nenhum falta se não tiver problema e que os bonzinhos são os piores, porque dizem pra não se preocuparem com chamada depois reprovam sem possibilidade de argumentação. Lembrei que ela havia faltado à primeira aula quando falamos sobre isso e pedi perdão em silêncio à professora que tomei por carrasca na disciplina anterior.

Muitos diriam que um doido roubando sua garrafinha, alguém batendo no seu filho, um assaltante que mata o assaltado são violências produzidas por vítimas das desigualdades sociais. Rasurar uma lista de chamada, bater no próprio filho e queimar um mendigo que dormia numa praça são enganos de pessoas inocentes e bem educadas, talvez carentes, que não sabiam o que estavam fazendo. Entre o crime e o engano, viro eu a pecadora e me penitencio copiando todo o conteúdo das aulas, presenças e ausências em lista nova de chamada.

 

Fonte: http://www.patio.com.br/labirinto