Universidade Federal do Ceará
Programa de Pós-Graduação em Educação - Doutorado
Disciplina: Correntes Modernas da Filosofia da Ciência
Professor: André Haguette

"Tombamento é queda"
Andréa Havt

Minhas alunas não sabem o que é tombamento e eu não sei pintar soprando tinta com canudinho. Minhas alunas falam de preservar no sentido inverso ao meu, quando falo de expressão que não seja só escrita ou falada. Elas não ligam saudade, memória, reminiscência, sonho, imaginário com história. Eu ainda não ligo cabeça com corpo. Nos dois casos há uma grande distância entre o que se pensa e o que se vive.

Esta semana me desafiei e arrisquei tragicamente pintar de canudinho em um curso de sociopoética: uma proposta de pesquisa onde os pesquisados produzem, através de várias linguagens como pintura e dança, junto aos pesquisadores. Essa semana propus às minhas alunas questionar as dimensões de poder ligadas à preservação de certos patrimônios, através de suas vivências pessoais de espaços diversos. Aquela velha e boa pergunta: Por que se preservou a casa-grande e não a senzala?

Eu na verdade sou pelo movimento e pela mudança, embora acredite não ser de bom tom entrar na casa alheia sem pedir licença: sair por aí invadindo espaços sem pensar nas conseqüências, independente da origem social do patrimônio. Também sou muito desapegada e até dos meus preciosos discos de vinil já consegui me afastar para não provocar minha alergia, apesar de ter a segurança de que eles estão bem guardados aos cuidados da minha irmã. Mas esses dias tropecei nas idéias e escrevi para o Eduardo na tentativa de reequilibrar os passos:

- Não sou saudosista.

- Tem certeza? Falou com muita ênfase...

- Acho que não sou.

- Assim está melhor. :)

- Mas fiquei chocada hoje quando vi a casa em que moramos na infância destruída para passar uma avenida.

- Chocada, tem certeza?!

- Chocada não é bem o termo... Acho que queria ter tirado uma foto, mesmo ela estando muito diferente. Acho que queria ter me despedido. Estou sem imagem da casa agora, estranho isso.

- Por isso que eu tirei minhas fotos do Pátio e também do Parque da Criança, pra não correr o risco de ter saudade sem poder matá-la. Mesmo porque sou um defensor de que se derrube o velho para construir o novo. :)

- Conto com as suas fotos do Parque para minhas memórias pessoais. Se bem que, para ser fiel às minhas memórias iria precisar de uma com um garoto rolando da escada.

Boa parte da minha infância foi assim... Depois de rolar da escada da minha casa demolida no Mucuripe, ia para a escola no Parque das Crianças assistir a um menino gordo rolar nas escadas da sua sala. Não tenho recordações muito boas dessa casa. Na escada que eu descia em queda, subia com medo de cruzar com algum monstro-rã. E talvez seja mesmo o medo a maior lembrança: do menino que me fazia caretas e morreu atropelado pelo trem; de pegar carona com o trem andando e cair, apesar da curiosidade pelo seu destino; do bêbado que me puxava pelo braço feito cachorro que só mexe com você porque sente o cheiro do medo; da Maria Doida que corria atrás de menino com um pedaço de pau quando era provocada; da mulher que toda noite torturava a filha recém-nascida...

Também sou a favor de construir o novo e sempre me perguntei para que preservar lugares de tortura ou de más lembranças, como me perguntava do sentido da cruz ser um símbolo religioso quando aparecia na história como lugar de morte. Como me perguntei do estranhamento da demolição da casa onde eu nem morava mais. Mas meu corpo teima em soprar cores de canudinho e brincar com minhas idéias. E isso me tem feito percorrer ruas com muito mais cuidado, como se pisasse em ossos.

 

Fonte: http://www.patio.com.br/labirinto